Um texto para Gian Matheus Machado ler teria as letras maiores e menos palavras. A notícia seria outra, provavelmente sobre por que o Homem-aranha perdeu os poderes no segundo filme da série que saiu dos quadrinhos e ganhou a telona. Mas a notícia desta vez é ele, que aos dez anos tem chances de se tornar o primeiro aluno da Associação de Amigos do Autistas (AMA) a encontrar espaço no mercado de trabalho.
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Matriculado no 5º ano do ensino regular, o menino consegue acompanhar o ritmo das aulas e já constrói o que quer ser no futuro.
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De lápis na mão, Gian traça o presságio do que quer se tornar: um artista. Um pintor. E o que sai da imaginação para o papel em dez minutos é o Homem-aranha. Não poderia ser diferente. O autismo no aspirante às artes tem pinceladas leves e se revela no “interesse monotemático”. Os sintomas que Gian apresenta não comprometem significativamente o desenvolvimento dele.
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O desenhista não tem doenças associadas ao autismo, o que ocorre em 80% das crianças diagnosticadas com o transtorno, de acordo com informações da terapeuta ocupacional da AMA, Andréia Bitencourt. Apenas 1% deles terá o que se chama de “inteligência secreta”, ou seja, traços de genialidade.
Joinville foi a segunda cidade do Brasil a receber a AMA, que se estabeleceu primeiramente em São Paulo. Com 27 anos de existência, a associação se tornou a mais importante de Santa Catarina. Os primeiros atendidos foram os filhos dos próprios fundadores da instituição. Desde que foi criada, nenhum paciente conseguiu ser incluído no mercado de trabalho.
Andréia tem a esperança de que Gian se torne o primeiro a ter uma profissão ao sair da AMA.
O transtorno do espectro autista (TEA) foi descoberto quando ele tinha sete anos. Mas antes dos três, o diagnóstico já pode ser feito. A maioria dos autistas chega a essa idade sem falar e sem procurar interagir espontaneamente com os outros. Habituadas a observar o processo a assistente social Paloma Pereira e a coordenadora educacional Arlene Cristina Fagundes descrevem as etapas, que podem levar de uma a duas semanas para serem concluídas.
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Os futuros usuários da AMA chegam ao local por indicação. A assistente social faz o cadastro da família. Em seguida, é agendada a entrevista detalhada, que se chamada anamnese, que inclui perguntas sobre a gestação e o tipo de parto. Na terceira etapa, três profissionais – na equipe da AMA, são dois psicólogos e uma terapeuta – observam a criança. “O brincar estereotipado” denuncia os autistas. As profissionais da associação costumam usar o exemplo do carrinho: um “brincar normal” é reproduzir o movimento do automóvel.
Nas crianças com o transtorno, o ato de girar o carrinho ocorre porque o interesse pelo objeto é diferente. Muitas delas arrancam as rodas e dispensam carroceria.
Quanto mais precoce a intervenção, maiores as chances de o autista se desenvolver.
– Hoje, o diagnóstico tem sido feito cada vez mais precocemente – comenta a coordenadora.
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Desde que se descobriu autista, há três anos, Gian frequenta tanto a escola regular quanto a especial.
– Meu filho melhorou bastante, no sentido da socialização. Ele nem olhava no olho. Hoje, a gente fala “Gian, dá bom dia”. Ele dá. “Gian, cumprimenta”. Ele cumprimenta – reconhece a mãe Josíbia Machado, que leva sempre o filho para passear.
– Quando a gente entra em uma loja, eu digo para ele perguntar quanto custa uma peça. Ele me responde: “Mãe, você sabe que eu sou autista, não posso perguntar”.
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Um mundo concreto
– A história do Homem-aranha começa assim: ele foi picado por uma aranha e ganhou superpoderes. Começou a ter pelos nas mãos para subir na parede. Quando ele tentou usar a teia, não deu muito certo. Eu só não sei por que ele perdeu os poderes no início do segundo filme – fala Gian, de frente para a professora da Associação de Amigos do Autistas (AMA), Sandra Mara.
O aspirante às artes é objetivo quando descreve a história. Cada informação segue a ordem temporal, sem manifestações de gosto. Ele não esboça graça diante da queda do super-herói nos primeiros passeios usando a teia como cipó na selva de pedra. Não há metáforas como na última frase que você acabou de ler. O mundo de Gian é objetivo.
Na escola regular, ele não tem amigos próximos. A lista de amizades é curta. Estão Nicolas e Bryan, vizinhos dele, e Érick e Kauã, que foram apresentados por intermédio do padrasto. O que ele mais gosta de fazer é brincar no computador, que ele não tem em casa, mas usa quando está com os amigos. Num mundo concreto, os objetos de que se gosta têm nome. Calisto, um coelho de orelhas caídas, foi o companheiro de Gian quando ele entrou na AMA. Fantasia é o macaco; Davi, o tigre; e Mateus, sem “th” é o gato. Todos de pelúcia.
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– Mas eu tenho um gato real. A Mimi – disse ele sobre a mascote da família.
A mãe dele não sabe de onde vêm tantos nomes. Josíbia também reconhece que o filho se isola um pouco das outras crianças na escola. Mas a educação física é o momento em que ele mais socializa. A turma de Gian foi dividida em duas filas. Cada aluno ganhou um número, que se repetia no grupo contrário. Quando o professor gritou 15, Gian correu para o centro da quadra. Pegou o pano e ficou parado esperando as ordens do professor enquanto o adversário corria na direção dele.
Correr com pano pode não ser muito a praia de Gian. Mas de frente para a tabela de basquete, o professor de educação física garante que ele acerta de primeira e mais de uma vez. É o exercício de que ele mais gosta. Assim como o desenho, nas tarefas pelas quais se interessa, ele é destaque. Com um ano de experiência como professora de Gian, Maria de Lourdes de Maia é só elogios ao aluno.
– Ele desenha muito bem. É inteligente. Aprendi com o Gian que a gente está sempre aprendendo.
Em uma das aulas, a professora pediu para os alunos completarem as frases em voz alta.
– Sol e chuva… – começou ela.
– Arco-íris – respondeu Gian.
– Não, Gian, é “casamento de viúva” – corrigiu.
– Não, professora, é arco-íris.
Ele viu diferente do que os outros imaginaram. Gian tinha a física e o mundo concreto a seu favor, e a resposta ficou sendo o arco-íris que tem as cores preferidas de Gian.
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– Azul é a minha cor preferida. Mas é todos os tipos.
.::Destaques
AMA
Usa o método Teacch, que organiza a relação do autista com o ambiente.
Fila
Sessenta aguardam diagnóstico na AMA, que tem 105 matriculados.
AACCA
É uma entidade nova em Joinville, que foi fundada por pais de autistas.
Naipe
Oferece terapias e consultas com especialistas para crianças autistas.
Símbolo
A fita feita de peças de quebra-cabeça, revela a complexidade deste transtorno.
.::Ajude
Se você quer ajudar a Assocaição de Amigos do Autista (AMA) de Joinville com doações (que podem ser feitas por depósito no Banco do Brasil ou no Sicredi, por boleto bancário ou com desconto na conta de energia elétrica), basta ligar para (47) 3425-5649. Para ajudar a Associação de Amparo e Celebração a Criança Autista (AACCA), também de Joinville, basta ligar para (47) 3227-9940 ou 9109-3917.