É na opy, a sagrada Casa de Reza do povo Guarani, que a cacica Celita Antunes, da Aldeia Yynn Moroti Wherá (águas belas que brilham), no município de Biguaçu, litoral de Santa Catarina, fala de algo que assusta: a saúde mental dos indígenas. Angustiada com o aumento nos casos de ansiedade, depressão e suicídios, a pedagoga formada pela Universidade do Sul do Santa Catarina (Unisul) e coordenadora da Escola de Educação Básica Wherá Tupã Poty Djá, acredita que no caso dos Guarani esteja faltando parte da espiritualidade.

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— Antigamente, a gente tinha o costume de frequentar aqui (Casa de Reza). Vinha a família inteira e se fazia rodas de conversa ao redor do fogo para ouvir os mais velhos, os sábios, que contavam sobre o passado e como as coisas aconteceram. Hoje, as pessoas não têm mais esse tempo, é cada um num canto, isolado, muitos com o celular na mão — diz.

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Em Santa Catarina estão três — Kaingang, Guarani e Xokleng — dos 305 povos indígenas do país. De acordo com o Censo 2022, são cerca de 21 mil em Santa Catarina. Conforme especialistas em saúde mental indígena, o enfrentamento às doenças precisa considerar a diversidade cultural de cada povo e inclui questões da espiritualidade.

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Para a cacica, o uso das tecnologias faz bem e ajuda muito nas comunidades. Mas como ocorre com o não indígena, tira as pessoas do convívio. Outra dificuldade é que os mais velhos não estão sabendo lidar com comportamentos dos jovens, estimulados nas redes sociais, como cortes de cabelo, roupas, músicas, alimentos industrializados, questões sexuais:

— A tecnologia entrou na cabeça das crianças e dos jovens. A gente ficou oco por dentro.

A cacica observa que a situação da saúde mental se agravou depois da pandemia de Covid-19.

— A cada ano que passa, a gente vê mais pessoas adoecidas nas comunidades. Tanto jovem como idoso.
A cada 15 dias, uma equipe médica volante da Secretaria de Saúde Indígena (Sesai) visita as aldeias do litoral catarinense. Mas falta assistência psicológica. A gente precisaria da Sesai mais presente, fazendo palestras e oficinas, treinando os agentes de saúde. É preciso um trabalho de apoio para com as parteiras, curandeiras e erveiras. Temos nossas roças, nossas ervas, nossas dietas. Podemos fazer nossos tratamentos e salvar nosso povo. Seria importante para fortalecer as comunidades, já que as pessoas sabem que a cura tem que ser do corpo, da alma e do espírito — acrescenta.

“Eu não falo de religião, falo de espiritualidade”

Nas últimas décadas, o elevado número de casos de suicídios entre os Guarani e Kaiowá do Mato Grosso do Sul chamou a atenção. Dados do Relatório Violência contra os Povos Indígenas, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), mostram que, entre 2019 e 2022, pelo menos 535 indígenas tiraram a própria vida.

Em proporção bem menor do que no Centro-Oeste, os indígenas do sul do Brasil também enfrentam o problema. Enforcamento em árvores, tiros e envenenamento por agrotóxico são as formas mais comuns.

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— É muito sofrimento ver uma pessoa com depressão, capaz de tirar a própria vida, e deixar a comunidade traumatizada — diz a cacica Celita Antunes.

Para a liderança Guarani, professora, mãe e avó, a espiritualidade precisa ser resgatada:

— Eu não falo de religião, falo de espiritualidade, aquilo que é de cada um, do interior, da nossa crença, da nossa cultura. Eu acredito que sem isso, a pessoa sente um vazio e vai buscar o suicídio.

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Em Araquari, busca pelo bem-estar físico, social e espiritual da comunidade

A saúde mental dos indígenas é influenciada por multifatores, como questões de território e da alimentação.

— Nas aldeias, a gente respeita os rituais de passagem de idade seguindo uma dieta de acordo com a nossa cosmovisão. Por isso, para nós, território não significa apenas área, mas um local onde se pode plantar, rezar, manter uma vida de acordo com nossa cosmovisão – diz Mari Escobar, Guarani que administra o Polo Básico Araquari, que pertence ao Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI-Sul) da Sesai.

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Para ela, também vice-cacica da aldeia Ka’aguy Mirim Porã, a saúde mental indígena está intrinsecamente ligada ao bem-estar físico, social e espiritual da comunidade. Atendendo a uma população de 700 indígenas de 14 aldeias espalhadas por cinco municípios, o Polo Básico sente o aumento da demanda.

— A gente tem diálogo aberto com a rede hospitalar da região que atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Entendemos o adoecimento como consequência de problemas profundos, como escassez de território, falta de acesso a serviços básicos e violências diversas — diz.

Em Ipuaçu, rodas de conversa servem para dividir as angústias

No Oeste de Santa Catarina, a situação é parecida, conta Aniéli Belino, médica indígena Kaingang no território Xapecó, em Ipuaçu. Na área de 15 mil hectares vivem cerca de 5,5 mil Kaingang e Guarani, distribuídos em 16 aldeias. Formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a generalista confirma que a busca por atendimento cresceu no pós-pandemia.

— Aumentou a incidência de depressão, ansiedade e outros transtornos mentais. Temos atendimento com um profissional da psicologia dentro da unidade. Dependendo da situação, pode haver encaminhamento externo. Há casos, inclusive de tratamento psiquiátrico — conta.

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Para a médica, uma situação que prejudica é o fato de o paciente indígena considerar que o resultado do tratamento não é imediato. Ela diz que a desconfiança é percebida nas rodas de conversa realizadas a cada 15 dias com o objetivo de diminuir essa angústia:

— Infelizmente, a maioria dos pacientes com depressão e ansiedade desiste do tratamento porque os resultados não são imediatos. Nosso esforço é fazer as pessoas confiarem que depois de um tempo haverá melhora.

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Conflito entre cosmovisão e religiões neopentecostais

No inverno de 2023, às vésperas da tese do marco temporal ser votada no Supremo Tribunal Federal, a reportagem do NSC Total esteve no território Xokleng, em Ibirama, no Vale do Itajaí, para acompanhar as expectativas dos indígenas. Na ocasião, uma liderança jovem criticou a presença de igrejas neopentecostais dentro das aldeias, o que estaria atrapalhando a cosmologia histórica do povo. De acordo com o rapaz, a situação estava difícil e havia indígenas pastores e isso comprometia, inclusive, os vínculos familiares. Na ocasião, eram nove aldeias e 14 templos no território Xokleng.

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— Sentimos vontade de buscar na ancestralidade, como no espírito do Camrém, líder à época da “pacificação”, respostas para esse momento de angústia. Mas eles (lideranças religiosas) dizem que isso é satanismo, que não se fala com espírito, que é coisa do mau. A gente fica louco da cabeça, pois temos rituais em que se busca conselho de quem ancestralizou (morreu) — declarou o jovem.

Nessa suposta guerra espiritual contra o diabo e suas representações na Terra, importante parte da cultura e da história indígena vai sendo deixada de lado. Com a conversão evangélica, muitos indígenas se transformaram no que o rapaz chamou de “índio-crente”.  Tal qual como na chegada do colonizador europeu, vive-se uma tentativa de imposição do cristianismo.

— Sempre quiseram nos converter, mas chegamos num ponto em que não tem conversa: tudo é coisa de Satanás e só eles (convertidos) estão certos — disse o jovem líder Xokleng.

Para a Guarani Geni Núñez, formada pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), integrante do Conselho Federal de Psicologia e da Associação Brasileira Indígena de Psicologia, essa é realidade de muitos parentes:

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— Em nome do bem, da salvação e do amor a Deus está sendo praticado o racismo contra as espiritualidades, línguas e costumes. Com a entrada de determinadas igrejas, também chegam preconceitos como machismo e homofobia, que impactam as populações.

Estatísticas insuficientes e inadequadas

Geni, que também integra a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), organização indígena que congrega coletivos do povo Guarani nas regiões Sul e Sudeste do Brasil na luta pela terra, participa de um coletivo nacional formado por profissionais da psicologia. A entidade critica a rede de atendimento, com serviços escassos e que muitas vezes não recebe o indígena como uma pessoa com direito a ser acolhida.

Para além da falta de profissionais, o coletivo destaca a importância das políticas de permanência para estudantes indígenas, desejando que os próprios jovens tenham oportunidade de prestar serviços à sociedade envolvente.

— Consideramos importante que o indígena seja acolhido num sistema de saúde, devido ao sofrimento. Mas que a forma de tratar respeite as medicinas tradicionais e a espiritualidade de cada povo — pontua.

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Ainda que reconheça a realidade, o Ministério da Saúde não apresenta números dos casos de doenças relacionadas à saúde mental nas aldeias. Para o coletivo, as estatísticas são insuficientes e inadequadas, por isso a necessidade de maior diálogo entre as instituições, para que haja unificação dos dados.

A situação pode mudar para melhor: com o aumento da presença indígena nos espaços, debates estão recebendo maior atenção e caminhos abertos para construção de estatísticas e de políticas aliadas.

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