O aumento da população em situação de rua tem se tornado um desafio para o poder público em Florianópolis e outras cidades de Santa Catarina. Ocorrências recentes de violência e segurança pública ampliaram as discussões sobre o tema e motivaram até uma proposta de lei que inclui internação involuntária em Florianópolis. A proposta foi aprovada pelos vereadores nesta segunda-feira (19) na capital catarinense, e já foi adotada em outros municípios do Estado.
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O problema não é exclusivo dos municípios catarinenses. Em todo o mundo, quase 150 milhões de pessoas vivem hoje em situação de rua, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU). O fenômeno é comum a países pobres e ricos, mas é relacionado a fatores como pobreza, saúde mental e uso de drogas.
Nos Estados Unidos, um relatório do fim do ano passado apontou que o número de pessoas sem-teto aumentou cerca de 12% desde 2022. No Brasil, uma em cada mil pessoas vive em situação de rua, conforme levantamento do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania divulgado em setembro.
A situação não é diferente em Florianópolis. Uma pesquisa da prefeitura feita em novembro do ano passado contabilizou 968 pessoas em situação de rua. A maioria é formada por homens, vindos de fora do Estado.
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Moradora passou por tratamento
Há 10 anos, a trabalhadora doméstica Kátia Menon deixou essa experiência para trás. A história dela começou quando ficou desempregada e foi expulsa de casa pelo ex-companheiro.
— Eu tinha dinheiro para algumas diárias. Roubaram minhas malas e eu não tinha [mais] dinheiro. Realmente fui parar na rua e não teve família, nenhum parente para me socorrer e me amparar — contou à reportagem da NSC TV.
Ela também revela que a dificuldade para lidar com emoções, sentimentos e dificuldades muitas vezes faz com que as pessoas permaneçam nas ruas.
Kátia se internou voluntariamente em uma comunidade terapêutica, quando descobriu que estava grávida, em 2014. Ela conta que recebeu um tratamento integral.
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— Eu sei que tem pessoas que precisam de ajuda para sair e, depois que passa a desintoxicação e que a pessoa se olha no espelho, vê que tem esperança — conta.
No Cadastro Único do Governo Federal, o número de famílias em situação de rua aumentou 45% em Florianópolis de janeiro a dezembro de 2023, chegando a 2.654 registros.
Problemas de segurança
O secretário de Assistência Social de Florianópolis, Leandro Lima, afirma que o aumento de moradores de rua traz consequências também na segurança pública.
— A gente percebe que há um aumento de pessoas em situação de rua por conta do verão, nós imaginávamos que isso iria acontecer e de fato está acontecendo. Com isso, aumentaram as situações de agressividade. Então isso não pode passar sem que a prefeitura tenha que tomar alguma atitude — afirma.
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Segundo a Polícia Militar, em dois meses a Capital registrou quatro crimes de maior repercussão que envolveram pessoas em situação de rua. Em um deles, no início do mês, uma mulher que passeava com um cachorro no Centro da cidade levou um soco de um homem. Ele apresentou motivações desconexas.
A corporação avalia que as situações são pontuais, mas que geram um sentimento de insegurança, especialmente na região central de Florianópolis.
VÍDEO: Mulher é agredida com soco no rosto enquanto passeava com cachorro em Florianópolis
Proposta busca permitir internação involuntária
A situação motivou a elaboração de um projeto de lei para permitir a internação de dependentes químicos e pessoas com problemas psiquiátricos em situação de rua.
A proposta enviada pela prefeitura prevê a possibilidade de internação involuntária, quando ocorre contra a vontade da pessoa, e já foi aprovada em primeira votação na semana passada. Agora, vai para a votação final na tarde desta segunda-feira (19), na Câmara de Vereadores de Florianópolis.
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A internação voluntária acontece quando a própria pessoa busca amparo ou aceita o atendimento numa instituição especializada, enquanto a involuntária ocorre sem o consentimento da pessoa, a partir do pedido formal da família ou de servidores públicos da assistência social e da área da saúde. As duas são diferentes da internação compulsória, que é quando é a Justiça quem determina o tratamento de forma obrigatória.
A internação involuntária prevista no projeto em discussão em Florianópolis divide opiniões.
— Você tirar a escolha desse sujeito é tirar a possibilidade dele de fato querer se tratar. E no campo psicológico a imposição não funciona. A pessoa tem que construir esse desejo. Não adianta a pessoa ser internada involuntariamente numa comunidade terapêutica e voltar para o seu lugar de origem sem nenhum contato ou referência com o processo de cuidado, com algo que vai dar continuidade para aquilo que ela viveu nesse processo — avalia a professora de Psicologia, Daniela Ribeiro Schneider.
Homem em situação de rua é encontrado morto no Centro de Florianópolis
A prefeitura afirma que a reabilitação vai abordar os vínculos afetivos e as questões sociais e econômicas.
— Não existe uma solução para toda a população em situação de rua, mas certamente a internação involuntária vai atender uma parte dessas pessoas que precisam de tratamento. Essa decisão será pessoal, familiar e médica. Um profissional médico vai acompanhar a pessoa para avaliar se ela deve ou não ser internada — garante o secretário de Assistência Social da Capital, Leandro Lima.
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O projeto de lei proposto pela prefeitura é baseado em duas leis federais, de 2001 e 2019. Por conta disso, o advogado Marcelo Peregrino diz não ver risco de inconstitucionalidade na matéria. Mas ele reforça que é necessário seguir as orientações do Plano Nacional de Política sobre Drogas.
— Esse plano nacional surgiu por uma liminar do Supremo Tribunal Federal proibindo a remoção compulsória na rua de forma indiscriminada, como chegou a ser feito em São Paulo e Rio de Janeiro em 2022 — detalha.
O Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) também reforça que a internação deve ser uma última alternativa de amparo, conforme a legislação nacional em vigor.
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A lei prevê que qualquer modalidade de internação, seja involuntária ou voluntária, só aconteça de forma extremamente excepcional, quando os recursos ambulatoriais, extra-hospitalares, não tiverem surtido os efeitos necessários dentro de um plano terapêutico individual que preveja metas e caminhos para buscar a reinserção e melhoria daquele quadro de saúde mental — explica o coordenador do Centro de Saúde Pública do MPSC, Douglas Martins.
Oficial da ONU alerta para ações de longo prazo
A oficial da ONU Hantamalala Rafalimanana ajudou a elaborar um relatório sobre essa questão no mundo. Em entrevista exclusiva à NSC TV, ela afirma que é preciso pensar além de ações emergenciais.
— Quando as autoridades focam em intervenções de emergência, ou seja, lidam com o problema só quando acontece, isso não leva a uma solução de longo prazo. Por exemplo: colocar pessoas em abrigos. Abrigos geralmente não dão dignidade, frequentemente são desumanos e inseguros. Constatamos que as autoridades públicas que investiram na proteção social, especialmente na proteção social para todos, fizeram muito progresso na redução do desabrigamento, porque a proteção social, ao ajudar as pessoas a sair da pobreza, ao fazer também as pessoas terem saúde, conseguirem emprego, isso ajuda a viver longe do risco de ir morar nas ruas — conta.
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