— Eles me deixam quase louca.

A frase em tom leve termina com uma risada, mas não esconde a preocupação de Sirlei Alves dos Santos, 35, que isolada em casa com os quatro filhos tem a missão de ajudá-los a entender os assuntos enviados pelos professores em apostilas. 

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Sem as aulas presenciais em Blumenau devido à pandemia do novo coronavírus, os ensinos público e privado optaram pelas atividades a distância para não prejudicar o andamento do ano letivo.

Isso significa que as matérias chegam pela tela do computador ou celular, através da internet. Porém, nem todos têm acesso adequado às ferramentas. Alguns sequer possuem internet em casa. Nestes casos, a alternativa são os materiais impressos. 

Quando as atividades não presenciais começaram, em 6 de abril, os quatro filhos de Sirlei acessavam os conteúdos pela tela do celular. Alguns dias depois a internet foi cortada por falta de pagamento e a saída foi recorrer ao papel.

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Sirlei cria sozinha os quatro filhos de 10, 13, 15 e 18 anos. Eles estudam, respectivamente, no 4°, 7°, 9º e 1º ano do ensino fundamental e médio em uma escola estadual do bairro Fortaleza. Vivem em uma casa alugada de dois quartos na região vizinha, o Tribess, e tentam seguir uma rotina semelhante à que tinham antes da Covid-19 chegar ao município: no período em que estariam na escola (à tarde) fazem as questões enviadas pelos professores em material impresso.

Ao todo, 4.275 estudantes da rede pública de Blumenau não têm acesso à internet.
Ao todo, 4.275 estudantes da rede pública de Blumenau não têm acesso à internet. (Foto: Diorgenes Pandini, BD)

Estudantes sem internet

Ao todo, 4.275 estudantes da rede estadual de ensino de Blumenau não têm internet em casa, conforme informado pelas famílias no momento da matrícula. Um percentual de 19%, já que, ainda de acordo com os números da Secretaria de Estado da Educação (SED), há 22,5 mil alunos em escolas da cidade. 

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Na rede municipal, segundo dados de meados de maio, 31% dos estudantes estão pegando o material físico nas unidades (6.491 pessoas) e 1.271 não estão interagindo em nenhuma das duas opções. Ou seja, mais de 12 mil jovens blumenauenses da rede pública de ensino não aderiram às plataformas virtuais das instituições.

Sirlei, que é diarista, no momento está sem emprego pois a ex-patroa mudou de cidade no começo do período de isolamento social. Paga as contas com o auxílio emergencial liberado pelo governo devido à pandemia, o Bolsa Família e a pensão de dois filhos.

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Aprender sem professor

Com o orçamento apertado, o mais velho, que já trabalha, ajuda a pagar o aluguel. Ele também acompanha a mãe toda segunda-feira na caminhada de cerca de 50 minutos (ida e volta) para buscar as apostilas na escola. Sirlei entrega as respondidas e pega as da semana, com assuntos novos. Assim, os meninos têm uma semana para finalizar todo o conteúdo. 

— Eu não consigo ajudar muito, a forma deles estudarem é diferente da minha época — confessa Sirlei.

A dificuldade da mãe se repete em milhares de outros lares do estado. Conforme a pedagoga e doutora em Educação, Cris Junckes, a situação é complexa para todos: alunos, responsáveis e professores. 

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Os docentes precisam decidir com muito cuidado o material a ser enviado, já que, na maioria das vezes, os jovens terão de estudar sozinhos, sem o auxílio de algum familiar. Ainda na análise da pedagoga, grande parte dos pais não tem conhecimento para dar suporte aos pequenos, principalmente nos anos iniciais.

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Entre os estudiosos há a preocupação de como os estudantes estão lidando com a situação atípica. A frustração por não conseguir fazer os exercícios pode criar tristeza, ansiedade e desmotivação. No fim das contas, o envio das atividades serve mais para “lembrar” aos discentes sobre a rotina escolar.

— Não tem como dizer que é a mesma aprendizagem, é impossível, é a interação que nos faz aprender. Penso que as atividades que estão sendo enviadas serve para a criança não ‘esfriar’ o que já aprendeu até o momento, especialmente para que ela se sinta vinculada à escola — ressalta Cris.

Uma das grandes preocupações dos educadores está no retorno. Quando as instituições voltarem a abrir as portas, o desafio vai ser tentar minimizar os impactos desses meses de atividades em casa – seja pela internet ou pelo papel. Para Cris, é uma oportunidade de repensar o currículo pedagógico, priorizando os assuntos mais importantes:

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— Esse é um ano atípico, é fazer o que for possível para ampliar um pouquinho o conhecimento de todos. Será preciso repensar o planejamento curricular a longo prazo. Como será desenvolvido o trabalho no ano que vem, por exemplo? Porque as crianças terão algumas pendências que não serão trabalhadas.

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Maria Eduarda, 13 anos, filha de Sirlei.
Maria Eduarda, 13 anos, filha de Sirlei. (Foto: Arquivo Pessoal)

Exclusão digital

A missão de substituir a presença do professor não é fácil para Sirlei, que estudou até a 7ª série. Exceto a caçula, que depende mais dos empurrões da mãe, os demais aprenderam a recorrer aos professores pelo WhatsApp — Sirlei conseguiu pagar a conta da internet e a conexão foi restabelecida depois de quase dois meses. Um alívio, confessa a diarista.

Não há muito espaço na residência para os filhos criarem distrações e passarem o tempo. Até a volta da internet, a televisão era a única tecnologia que os prendia durante algumas horas. 

Ao lado da TV, na mesa da cozinha, os quatro revezam entre si o momento de estudar, cada um com um dia da semana. Em meio ao barulho dos demais, algumas horas são dedicadas aos conteúdos “analógicos”.

Para o doutor em Educação e professor na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC Blumenau), Alaim Souza Neto, a pandemia evidenciou mais um tipo de desigualdade entre os estudantes: a exclusão digital.

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 Uma pesquisa do Comitê Gestor da Internet no Brasil, divulgada no ano passado, apontou que 58% das casas brasileiras não têm acesso a computadores, e 33% não têm internet – nem mesmo no smartphone. 

— Como vai ter acesso digital se tem criança que vai para escola comer? A tecnologia não é solução mágica e eu não consigo te dar uma receita, mas o desafio é pensar de algum modo como não aumentar ainda mais essa exclusão — pontua Alaim.

Cris acrescenta que há professores que também não possuem as ferramentas necessárias em casa. Há quem elabore as atividades pelo celular. Alaim, que tem especialização em uso de tecnologia nas escolas, ressalta que a falta de estrutura e formação dos docentes impedem que o digital contribua de forma efetiva na educação dos jovens. Porém, de repente, todos precisaram utilizar alternativas virtuais para atingir (parte dos) os alunos.

— A cultura não é digital, é analógica. Não há formação, tanto de professores quanto de estudantes, para uso das tecnologias — destaca Alaim.

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Vida em primeiro lugar

Ainda não há muitas respostas para as dificuldades do ensino em tempos de pandemia, assim como as soluções para outros setores da sociedade não estão muito claras. Será preciso repensar a maneira como a educação é tratada no país e como usar a tecnologia em um cenário tão desigual, refletem os especialistas.

Porém, uma questão é unânime: a vida está em primeiro lugar. Antes de pensar em como combater o impacto na educação, é necessário proteger a vida dos estudantes e das famílias deles. E essa lição Sirlei já sabe de cor:

— Seria muito bom ter o retorno (das aulas), pois mesmo fazendo as atividades em casa sei que eles não estão aprendendo, sinto que estão tendo muita dificuldade. Mas a saúde deles depende de nós, pais. Eles não têm noção do que realmente significa distanciamento social e acho que ainda não é a hora de retornar — diz a mãe.

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