Ele fez um militar em "Uma Noite de 12 Anos", filme que conta a história de três presos políticos durante a ditadura no Uruguai – entre eles Pepe Mujica, que se tornou presidente do país. Não foi a única obra de sua carreira com esse tema como pano de fundo. Mas é em personagens do cotidiano que reside a maior parte dos trabalhos do ator uruguaio César Troncoso no cinema.
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Do homem que constrói um banheiro para ganhar dinheiro ao marido violento, passando pelo famoso traficante Pablo – que foi transportado da música Faroeste Caboclo, da Legião Urbana, para a dramaturgia -, os papeis de um dos mais conhecidos atores da América Latina são diversificados. É para falar principalmente da produção uruguaia que ele está em Santa Catarina.
Desde terça-feira (14), Troncoso participa da programação da 3ª Mostra de Cinema Uruguaio na Capital, realizada pela Fundação Cultural Badesc e Associação de Uruguaios em Florianópolis (Asurflo). A programação encerra neste sábado (18) com a exibição do filme "A outra história do mundo", às 15h, gratuitamente, na sede da fundação, no Centro da Capital.
Troncoso também vai conversar com espectadores sobre o longa. Nesta entrevista, ele fala sobre temas recorrentes no cinema latino-americano e analisa o perfil político da arte.
Você já participou de filmes brasileiros, como "O Tempo e o Vento", "Faroeste Caboclo", "Elis", e "Benzinho". Também fez novela aqui, "Flor do Caribe". Que semelhanças percebe entre a dramaturgia feita no Brasil e no Uruguai?
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As diferenças passam pelos orçamentos. É bem claro isso quando você trabalha em uma novela da Globo. A diferença de orçamento é bem grande. Quando você trabalha em filmes pequenos, que eu também tenho feito, fiz no Rio Grande do Sul, aí os filmes se parecem. A lógica é a parecida. E tenho percebido que o ator é uma raça internacional, não tem diferença. Você é da classe que não importa se está trabalhando na Argentina, no Brasil, no México.
Eu não sinto essa diferença. Pode ser de histórias, muitas vezes, e outras de orçamento. Mas o modo de fazer cinema, a paixão é a mesma.
Essa dificuldade de financiamento para produções cinematográficas que ocorre no Brasil, também existe no Uruguai e outros locais em que você atuou?
Sim. Pra mim tem várias causas. Por um lado, o mercado está tomado 100% pelos Estados Unidos. O cinema não vale só pra se divertir. Vale pra mostrar um país, se posicionar, fazer cultura. Agora tem isso de que a cultura é muitas vezes pensada como se fosse uma coisa ruim, de que é um problema, e não uma solução. Ou parte da solução. As vezes tem isso, essa sensação de que você tem que preparar de novo o espectador pra que ele comece a perceber que tem a possibilidade de gostar de filmes que não seguem aquele padrão norte-americano. Isso é acompanhado também pelo problema de que, agora, estamos tendo políticos de baixa qualidade na região, e políticos que não assistem teatro, não vão ao cinema, não veem exposições, que não leem. Como se as artes fossem uma coisa que se pode deixar de lado. E não é assim, pra mim. Pra mim, fazer arte é trabalhar com a sensibilidade. Eu acho que temos esses problemas que não são do Brasil, do Uruguai, da Argentina. São da região.
O cinema da América Latina tem esse perfil social, político. Você fez vários filmes que têm a ditadura como pano de fundo. Por outro lado, há uma crítica a esse tipo de cinema, que está sendo rotulado, muitas vezes, como algo ligado a determinada área político-partidária. Isso te preocupa?
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Sim. Me preocupa, primeiro, porque não é verdade. Um artista preocupado com a sociedade não deveria ter aquele cartão de comunista. Comunismo é outra coisa e, como eu entendo, é uma coisa que não aconteceu no Brasil, nem no Uruguai, nem na Argentina. Pode ter aquela coisa na Venezuela, que vamos ver como acaba, mas a região não é comunista. Pode ter, as vezes, governos que são de centro com uma preocupação com o social. E essa deveria ser sempre uma preocupação do governo. O estado nasceu para se preocupar com o social. Você não pode pedir isso pra empresa privada. Ela está para o lucro, e isso é lógico. Então é o estado que tem que fazer. Mas não é verdade que isso seja comunismo. Essa é uma responsabilidade que o estado tem que ter. É pra isso que ele existe. Achar que porque a classe artística se preocupa com a fome das crianças, com a gente pobre, é comunista, é estúpido. Eu acho que quando nós vivemos em uma sociedade, a preocupação tem que ser a vida de boa qualidade. E eu não posso viver com uma qualidade maravilhosa se tem gente ao lado passando fome. Isso não é comunismo.
Temos que deixar de falar com slogans e pensar que essas coisas são para que cada um de nós viva melhor. Se resolver o problema da fome, da falta de emprego, quem vai viver melhor sou eu.
Como você percebe que o cinema latino-americano é visto nos Estados Unidos e na Europa? Acredita que os países de primeiro mundo conseguem absorver nossas características?
Sim. Vocês agora estão com cinco filmes nos festival de Cannes. O Uruguai ganhou prêmios internacionais. Eu já fui em festivais internacionais que estavam com o olho colocado no cinema latino-americano. Eu lembro de um cara do cinema suíço que estava morando no Uruguai, e eu perguntei a ele porque estava em Montevidéu, se tinha a vida resolvida na Suíça. E ele me falava: "é por isso que estou aqui, porque aqui ainda tem coisas pelas quais vale a pena lutar". E eu acho que o cinema de nossos países tem isso. É interessante para o mundo porque é um cinema que ainda está sendo construído, que está falando de coisas que ainda não estão resolvidas. Não é o cinema daquele cara que tem tudo resolvido e não sabe mais do que falar, que a única coisa que pode fazer é a repetição o tempo todo da mesma lógica de filme. Aqui temos do que falar e é por isso que nosso cinema é rico. Mas também é diferente em cada região, cada um tem suas características, e isso é interessante para o mundo.

A própria história da ditadura é tratada com frequência no cinema latino-americano. Neste sábado será exibido aqui A Outra História do Mundo, que você faz, e tem um tom cômico ao tratar deste assunto.
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O diretor tentou fazer um filme mais leve, com outro jeito de falar de proibição. Se passa em um vilarejo no interior. O problema é que chega um novo militar ao povoado e ele obriga que os bares sejam fechados às dez da noite. E tem dois amigos que tentam fazer um auto de resistência contra o coronel, sempre com humor, tentando trazer essa coisa de que a vida é trágica, mas você tem condições de rir.
Por outro lado tem "Uma Noite de 12 Anos", que trata da ditadura de um jeito muito tenso, forte, pesado.
Sim. É um problema, né. Eu as vezes penso: "não gostaria de estar falando da ditadura, fazendo filme sobre ditadura". Já passaram mais de 40 anos, eu não queria estar falando disso. Mas como foi tão mal resolvido, e ainda tem um monte de coisas que não se sabe, um monte de gente desaparecida, e ninguém dá uma resposta, temos que continuar falando. E encontrar diferentes caminhos pra falar do tema, porque continua sendo necessário.
Tomara que um dia isso se resolva, se respondam todas as perguntas, que são tantas, e a gente vá pra outras coisas, fale de outras coisas, mais bonitas. Mas ainda é necessário.
Um de seus filmes mais conhecidos é O banheiro do papa, uma coprodução com o Brasil, que tem enfoque social de um jeito cômico. Como você vê a repercussão que essa obra teve?
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É uma tragicomédia. E é como é a vida na fronteira. Você pode passar momentos felizes, mas na verdade está todo o tempo tentando resolver o dia a dia. Você sonha, mas tem poucas opções. É a vida de uma classe social que é a da maioria, as pessoas se identificam. E você pode fazer uma translação da problemática deste lugarejo para qualquer outro lugar. A mesma coisa com os espanhóis indo trabalhar na Alemanha, os latinos que querem ir para os Estados Unidos, os venezuelanos saindo de seu país. Vira um tema universal.
Aqui no Brasil você teve a experiência de fazer novela da Globo. Como foi?
É outra lógica. Gostei. Ainda tinha algum problema com a língua. Eu comecei fazendo filme no Sul, aprendendo o roteiro de memória. E a velocidade que você faz a novela é outra. Acabou sendo ótimo porque eu consegui trabalhar, foi uma maravilha. Eu sinto muito orgulho de trabalhar no Brasil. Já trabalhei muitas vezes, com os mesmos diretores, e eu sinto muito orgulho. Acho que meu ofício, na verdade, foi construído também porque o Brasil apareceu.
Se eu só trabalhasse no Uruguai, ainda continuaria empregado em escritório de contabilidade. Foi porque apareceu o Brasil que eu virei o ator que eu sou.
Tem vontade de voltar a atuar em novela brasileira?
A vontade eu tenho, eu preciso que as emissoras também tenham [risos]. A experiência foi linda. Morar no Rio de Janeiro também, uma das cidades mais lindas da América. Eu quero voltar a todos os lugares que já estive e incorporar outros.
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Que nomes vocês destaca entre aqueles com quem já trabalhou?
Atuei com Tatá Amaral e Denise Fraga, Edson Celulari, Vladimir Brichta. O brasil tem grandes atores e eu consegui trabalhar com vários deles. Trabalhei com Marco Ricca no Cabeça a prêmio, que foi o único filme que ele dirigiu, um filme lindo. Com Fulvio Stefanini. Trabalhei com Adriana Esteves em Benzinho. Eu agradeço isso, porque eu assistia novela brasileira no Uruguai, todos esses atores. E um dia aparece um papel pra eu ser esposo da Adriana. Claro que vou fazer! Coisas que você não acha que pode acontecer com você e acontecem.
Você já dirigiu? Tem vontade?
Não dirigi. Tenho vontade, mas o problema é que tenho preguiça. Se eu tivesse menos, acho que já teria feito alguma coisa, no teatro com certeza. Mas tenho preguiça.
Você está passando vários dias por aqui, participando de bate-papo sobre cinema também. Você já conhecia a cidade? Costuma vir a Santa Catarina?
Eu já tinha vindo aqui há 30 anos, na Armação, Sul da Ilha, tirar férias com um grupo de amigos. Minha mulher veio recentemente, e minha filha, no Norte da Ilha. Era verão e eu estava trabalhando, e vieram elas. Eu vou ter que voltar porque quero me reconectar com a Ilha. Tenho amigos que moram no Sul.

Nesta semana, tivemos um dos maiores protestos já registrados na história da cidade, com mais de 20 mil pessoas nas ruas se manifestando a favor da educação. Você soube desta mobilização? Como vê estes atos?
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Como eu morei no Brasil, gosto do país, não pude deixar de lado isso. Eu estou por dentro das coisas que estão acontecendo, e esse corte de 30% na educação é um erro. Não tem como dar certo isso. A educação é a coisa principal. Meu pai, que era um galego que foi para Montevidéu, tinha estudado só até o terceiro ano. E ele se preocupou sempre em dar educação aos filhos.
A educação nos melhora, nos permite desenvolver, ter mais opções.
Pergunto isso até porque a gente começou falando sobre o quanto um momento político afeta o cinema.
Sim, e é interessante porque é muito importante que a gente fale, que se manifeste. A política não é um problema dos políticos, é um problema dos cidadãos. Porque se você esquece a política, alguém vai pegar e fazer o que quiser com ela, e não vai ser o melhor. A responsabilidade é do cidadão. E esses tempos que as vezes são difíceis nos fazem falar. Não podemos esquecer dela.
Por isso é importante que os artistas se posicionem? Porque também amplificam a discussão?
Eu só não concordo que por um artista ter uma posição política X a gente deixe de assistir ele. Isso não dá. O cara expressa suas próprias convicções e você pode discordar. Quem se posiciona, pra mim, é que vale, ainda que se posicione contra as minhas ideias. Porque demonstra responsabilidade civil.
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Você comentou que o ator é uma raça internacional. O escritor colombiano Gabriel García Márquez dizia que se sentia "latino-americano de todos os países". É como se ele tratasse a América Latina como uma grande nação, com suas particularidades. Você concorda?
Sim e não. Os problemas são parecidos, então em algumas partes somos a mesma coisa. Mas também somos diferentes. Eu sinto que estamos em um tempo em que muita gente quer fazer uma homogeneização, como se houvesse um latino-americano padrão e, com esse padrão, fosse possível tratar todos os outros. Eu já acho que o que vale é a diferença. A nossa preocupação é sempre a mesma: amor, trabalho, saúde, que nossos filhos sejam melhores que nós, que tenham educação e boa vida. Mas a diferença também vale.
A minha sensação é: eu sou irmão latino-americano daquele outro que está ali. Poder viver com as diferenças é o que faz de nós pessoas mais inteligentes.