Não é questão de performance. Muito menos de competir, ultrapassar e vencer os principais atletas do triatlo. Tornar-se um homem de ferro do esporte vai além de tudo isso: é encarar os desafios e ter o desejo de viver intensamente. Não se trata de uma conquista qualquer. Nadar 3,8 km, pedalar 180 km e correr mais de 42 km durante dezenas de horas é uma metáfora do cotidiano e cruzar a linha de chegada é coroar a capacidade dos seres humanos de enfrentar qualquer obstáculo. Qualquer um pode se tornar um Ironman, basta dedicação, humildade e treino, muito treino. Nesta edição do Nós, você confere histórias de pessoas comuns que mudaram a alimentação e começaram a se exercitar para viver melhor e vão disputar a prova mais dura do planeta.

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Homens e mulheres de ferro encaram o Ironman neste domingo em Florianópolis

Como diria o ganhador do Nobel, o músico Bob Dylan, por trás de cada coisa bonita que vemos, há alguma dose de sacrifício. São meses de preparação para enfrentar uma batalha dura entre o cansaço e a persistência. É preciso ser resiliente e capaz de responder aos estímulos sem perder o olhar no objetivo a ser alcançado. A tão temida prova pode não significar nada para quem está de fora, mas para os milhares de desconhecidos é a resposta para a vida.

No domingo, 2,5 mil atletas de 44 países estarão em Jurerê Internacional, em Florianópolis, para testar seus limites e provar que nenhum obstáculo é grande o suficiente que não possa ser ultrapassado. Entre essa turma toda estão médicos, dentistas, corretores de imóveis… Gente como a gente, guerreiros e guerreiras de um mundo cheio de problemas.

Fernanda Keller, pioneira no triatlo no Brasil e uma das principais expoentes da modalidade no país, lembra que também era mais uma na multidão quando decidiu fazer seu primeiro Ironman, em 1987, no Havaí. Naquele tempo, bicicletas de carbono, tênis de última qualidade e maiôs de natação super eficientes eram coisa de ficção científica.

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Com apenas 20 anos e sem nenhum apoio, a atleta encarou a aventura e embarcou para enfrentar o desafio. Foi um ato de coragem que acabou dando certo e mudou a vida dela que hoje nem sonha em ficar longe do esporte que lhe trouxe um grande cansaço, mas que a retribuiu com tantas alegrias.

– Tem que ser muito forte e determinado para enfrentar um dia inteiro nadando, pedalando e correndo para vencer a si mesmo e cruzar a tão sonhada linha de chegada. É uma vitória muito pessoal e do espírito. O que inspira é acreditar que tudo é possível quando nos entregamos de corpo e alma – reflete a triatleta.

Keller vive do triatlo 24 horas por dia. Profissionalizou-se no esporte e roda o país contando sua experiência ao longo destes mais de 30 anos de carreira. Para ela, Ironman não é uma prova para pessoas com habilidade extrema, mas sim com bastante vontade e força mental.

– Os verdadeiros campeões do Ironman não são os atletas profissionais e sim os anônimos que chegam no limite para encerrar a prova após quase 17 horas correndo e no escuro – diz Keller ao lembrar que a prova geralmente termina após o sol se pôr.

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Mas, o que leva alguém a se esforçar tanto assim? Quem treina para o Iron está cansado de ouvir essa pergunta, afinal quem não vive de nadar, pedalar e correr acredita que enfrentar tantas adversidades é coisa de maluco, no mínimo. A psicóloga Ana Cristina Ielo Oliveira, especializada em esporte e triatleta nas horas vagas, talvez tenha a resposta:

– O esporte imita a vida e vice-versa. O que aprendamos no esporte levamos para vida. Funciona como um desenvolvimento pessoal. Não à toa, existem vários exemplos de superação de drogas, de fobias, perda de peso, pessoas ansiosas que conseguem se controlar com a ajuda de uma rotina de treinamento – explica.

No fim das contas, trata-se de uma terapia capaz de torrar mais de 10 mil calorias além de ser um santo remédio, ideal para ansiedade e depressão. Mãe de dois filhos, Ana decidiu usar a profissão como estratégia para ajudar entusiastas da modalidade a disputar provas de alta intensidade. Sem esse trabalho bem feito, a possibilidade de chegar no meio da prova e desistir pode ser grande. Ela chegou até o triatlo com orientação médica para tratar uma hérnia de disco, agora auxilia outras pessoas a vencer as pedras que estão no caminho. O segredo do sucesso está nas pequenas coisas da vida.

– Segundo estudos um hábito novo demora de 21 dias até 60 dias para se instaurar na rotina. Para ser consistente o segredo é ter objetivos a longo e curto prazos. Pequenas metas ajudam bastante, além do famoso foco, que nada mais é que dizer não a tudo que não é seu objetivo naquele momento – orienta.

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Sem dinheiro no bolso mas pouco importa

É comum buscar a solução de problemas do cotidiano no esporte, principalmente no triatlo. Completar o Ironman é quase como obter um certificado de superação na vida, seja para superar problemas psicológicos ou físicos.

Não pense você, que está sentado em casa lendo este texto, que o dinheiro pode ser uma barreira para começar a treinar, já que muitos acreditam que a falta de recurso é empecilho para você sair do sedentarismo.

Não foi assim com Juninho. A falta de verba nunca superou a vontade dele para disputar o seu primeiro Ironman. Paulista de São Pedro, Luiz Carlos Pissinato Junior veio de carro do interior de São Paulo para realizar o sonho na Ilha da Magia. Demorou quase um Ironman inteiro (13 horas) para chegar na Capital. A greve de caminhoneiros que fechou diversas estradas do país atrasou sua viagem e por isso ele perdeu o treino oficial de natação, que ocorreu na quinta-feira pela manhã. No entanto, os obstáculos não estragaram sua euforia.

Aos 34 anos, Juninho já começou vencendo. De família humilde, o atleta amador veio com a mãe e se desdobrou o máximo para juntar dinheiro e conseguir disputar a competição que faz ele perder o sono de tanta ansiedade.

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– Conheci o triatlo quando a modalidade foi incorporada na Olimpíada de Sydney, em 2000. Na época meu pai comprou uma bicicleta velha para que eu conseguisse treinar. Mas, nunca levei a sério – conta o atleta que ainda complementa a história falando sobre o tempo que abandonou os esportes e chegou a pesar 107 kg sem mover uma agulha para sair desta situação.

O triatlo só voltou para sua vida, em 2015 quando uma antiga namorada terminou com ele. Seu palpite foi que o fim do relacionamento aconteceu pois ele estava “gordinho”. Isso foi o estopim para voltar aos treinamentos.

– Na época morava em Florianópolis e trabalhava de barman. Diversas vezes fui treinar depois de uma noite inteira de trabalho. Muitos amigos me ajudaram a realizar esse sonho, pois dinheiro sempre faltou – lembra Juninho, que hoje é recreador em um hotel no interior paulista.

De lá pra cá, a situação financeira não melhorou. Tanto é que o atleta tem dificuldade para pagar uma orientação completa para ajuda-lo a treinar. Até mesmo a inscrição na competição foi custeada por um amigo.

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– Quem me ajudou a pagar a inscrição do Ironman foi um hóspede do hotel que eu trabalho. Não tenho condição de ter uma nutricionista. Como arroz, feijão e ovo que minha mãe prepara. Como tanto ovo, que tem até umas duas granjas me seguindo no Instagram – brinca.

Esse ponto é muito delicado na preparação dos atletas que querem disputar o Ironman: a alimentação. Na verdade, esse ensinamento vale para nosso dia a dia. Manter-se bem alimentado é crucial, seja para ter uma vida de atleta de triatlo, ou para viver sem sustos. Ter uma nutricionista acompanhando pode fazer a diferença na hora da competição e na hora de largar a vida sedentária.

Mesmo quem não tem condição financeira para fazer esse acompanhamento pode chegar ao Ironman em ótima forma, como conta Rebeca Cipriano, mestre em Nutrição pela UFSC e que atende diversos atletas do triatlo. E para isso não é necessário gastar um fortuna.

– O Ironman nos mostra que uma boa alimentação é simples e barata. Todos deveriam se alimentar como um atleta que tem como sonho competir nesta prova. Comendo comida de verdade e nada de alimentos ultraprocessados e industrializados. Sempre o mais natural possível. Para isso é preciso disciplina e organização.

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A dor sempre fez parte da minha vida

Desde pequeno Juarez Fontenelle foi vidrado em esporte. Faixa preta em karatê, ele rodou o Brasil competindo. Filho de militar, soube sempre que praticar e competir, mesmo que seja contra ele mesmo, podem trazer uma qualidade de vida sem precedentes.

Entretanto, o esporte de alto rendimento é cruel. Lutando karatê, Juarez teve uma lesão séria no tornozelo que o afastou das competições. O joelho também sofreu com os anos de luta e ambas as lesões fazem ele mancar e sofrer com dor diariamente. A dificuldade é visível. Ele manca até em pequenas caminhadas, uma vez que seu tornozelo não consegue dobrar o suficiente para ter um passo tranquilo.

Aí você pode pensar: essa cara abandonou o esporte e vive em casa. Ledo engano, meu caro leitor. Quem vê o ex-carateca andar não imagina que no domingo ele vai disputar seu primeiro Ironman.

Mesmo lesionado, Juarez mostrou porque essa é uma prova feita por atletas resilientes e o exemplo dele serve de inspiração para todos nós.

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Começou na natação. Como sentia muita dor para correr decidiu que nadar forçaria menos seu corpo. Se empolgou e começou a fazer maratonas aquáticas.

Foi ao ver uma largada do Ironman em 2007 que o sonho de se tornar um homem de ferro começou a fazer sentido. Colocou na cabeça que iria disputar uma prova como essa. Ele só não sabia quando.

Adiou por diversas vezes a estreia na competição até que há um ano e meio decidiu encarar o desafio após receber o aval da esposa, que o incentivou a vencer mais esse desafio. Procurou ajuda profissional e fez uma bateria de exames que constataram que ele estava apto para competir, mas ao “seu ritmo”.

– Eu convivo com dor diariamente. Existem tantos problemas mais graves que eu acabo superando mentalmente isso. Vejo pessoas com a minha idade (54 anos) com dor de velho. Eu tenho uma história para cada lesão, eles não. Nunca deixei de fazer nada por conta da dor. As compensações que eu tenho superam qualquer dor. Vale a pena. Eu gosto de me desafiar – afirma.

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Fontenelle podia muito bem parar com o esporte logo que se lesionou. Mas, a opção pelo triatlo para se manter em forma faz sentido até mesmo cientificamente – e você aí achando que aquela preguiça era desculpa suficiente para se manter deitado em berço esplêndido. Segundo o quiropraxista Eder Teixeira Nunes, que trabalha no recondicionamento muscular de pessoas que praticam este esporte, o triatlo força o corpo ao limite, mas exige de músculos específicos ao nadar, andar de bicicleta e correr. De maneira didática, ele explica:

– No triatlo você trabalha a musculatura de uma maneira mais global e ampla. Como se uma modalidade ajudasse na recuperação da outra. Em caso de lesão na corrida, é possível, em alguns casos, continuar nadando ou andando de bicicleta. Essa é a vantagem do esporte – diz o especialista.

Brincando com suas lesões Juarez crava:

– Serei o primeiro atleta manco a completar um Ironman. Como o Chorão dizia: para quem tem pensamento forte, o impossível é só questão de opinião.

Atleta que salva vidas dia após dia

Dores nas costas e nas pernas fazem parte da rotina de uma vida acelerada. Um médico cirurgião, por exemplo passa horas no centro cirúrgico, sob tensão. O trabalho puxado e atenção extrema exigem uma adaptação do corpo que precisa estar preparado como um atleta. A situação pode se agravar quando se passa até seis horas de pé sem descanso dentro de um hospital com sangue nas mãos concentrado para salvar vidas.

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A rotina do médico Danton Spohr Correa é essa, mas com um agravante: ele trabalha principalmente com pacientes que buscam a cura do câncer. Como cirurgião oncológico, a vida e a morte passam pelas mãos dele e o estresse no momento do trabalho é tão grande que a busca por uma válvula de escape é uma obrigação.

Correa sentiu na pele os estragos de uma rotina intensa. Fora do peso e hipertenso, ele foi diagnosticado com depressão no período que estudava em São Paulo. Precisou tomar remédios e uma importante decisão: sair do sedentarismo e buscar no esporte um subterfúgio.

Na época, ele conta, praticar alguma modalidade parecia ser algo muito difícil de encaixar na loucura do dia a dia. Optou pela corrida. Começou de leve como forma de condicionamento para vencer a luta entre corpo e mente.

Separou três dias por semana com treinos que duravam entre 30 e 40 minutos. Tempo razoável para todos nós, não? Largou a vida em São Paulo e voltou para Florianópolis, cidade onde cresceu. Na Capital decidiu que havia “pegado gosto” pela corrida.

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Começou a competir, mas o esforço acabou lesionando seu joelho às vésperas da maratona de Nova York, sua primeira prova de longa distância.

– Para não ficar parado, o meu treinador pediu para eu começar a nadar. Logo na sequência ele me sugeriu bicicleta e assim entrei no triatlo. Uma lesão de corrida me levou para um novo esporte – lembra o médico.

Correa começou a intensificar os treinamentos e levar a história de nadar, pedalar e correr tão a sério que este ano o cirurgião oncológico completará sua décima participação no Ironman, prova que ele classifica como sendo uma luta interna de superação cujo objetivo é cruzar a linha de chegada e não vencer os demais oponentes.

A principal lição que a prova ensinou para ele foi a humildade, pois durante a competição nem sempre os melhores preparados encontram vida tranquila. De acordo com o médico atleta, a imprevisibilidade é algo que ensina bastante a viver. Quebra de equipamento, lesões durante o percurso ou problemas alimentares podem comprometer meses de treinamento. Saber contornar esses obstáculos é algo que fortalece os atletas.

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– Para mim Ironman é uma metáfora da vida. Na primeira prova, minha esposa e meu filho foram. Foi uma prova família e eu só consegui completar, pois eles me deram todo o apoio para isso – se recorda emocionado o médico, que ainda lembra os benefícios do esporte para o cotidiano profissional.

– Sempre que há um dia ruim saio para treinar e volto com a mente mais tranquila com condições melhores para resolver os problemas. Sem contar que o esporte me trouxe condicionamento para aguentar as cirurgias.

Mesmo com 47 anos, uma coisa já preocupa o médico triatleta: o dia de parar. Uma hora o corpo poderá impossibilitá-lo ele de treinar, mas quando isso deve acontecer ele não sabe dizer:

– Espero ter 80 anos com disposição para correr mais um Ironman. Tem gente que faz, por que não posso chegar lá?

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