“Toda cidade precisa ter raízes mais fortes”. É o que diz Oswaldo Schroeder, de 88 anos. E, para ele, as raízes de Joinville estão em uma casa na Rua Max Colin, onde é sediada a Associação Arte e Cultura Lírica. A sociedade, que atualmente é uma das poucas que preservam a cultura alemã da cidade, completa 100 anos nesta sexta-feira (10).

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E em um século cabe muita história. Desde o puxadinho no fundo de um terreno até o casarão que é hoje em dia, a Lírica presenciou muitos momentos históricos de Joinville e abrigou muitos membros. Uma história tão longa assim precisa ser contada, não é mesmo?

Origem simples

Na época de 1920, em uma Joinville onde se falava alemão com naturalidade, era comum que trabalhadores, artesões, artistas e até grupos de amigos da igreja se reunissem depois de um longo dia de trabalho. Durante esses encontros eles conversavam, descansavam e, principalmente, cantavam melodias tradicionais da Alemanha

Essa tradição se tornou uma parte tão grande da rotina das pessoas que, em 1922, um grupo de 16 homens criou a Gesangverein Liederkranz, ou Sociedade Círculo de Cantores, com a intenção de manter a tradição viva. Assim nascia a Lírica, no salão de baile de um dos membros do grupo, localizado da rua João Colin.

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Desde então, a sociedade já contou com sete presidentes. Atualmente, a diretoria está sob os cuidados de Osvaldo Hinsching desde 2004, que ainda jovem ingressou nas danças e no coral Xant Chor, um grupo formado exclusivamente por homens que performa músicas tradicionais dos marinheiros da Alemanha.

Membros do coral da Lírica
Membros do coral da Lírica (Foto: Salmo Duarte / Arquivo A Notícia)

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Lírica durante a Segunda Guerra Mundial

A pequena sociedade prosperou por 17 anos, cada vez atraindo mais membros – a ponto de criarem um uniforme e instaurarem a cobrança de uma mensalidade para a compra de instrumentos e acessórios para a banda – quando a Segunda Guerra Mundial estourou, em 1939. 

Neste período, um forte movimento nacionalista incentivou o sentimento anti-germânico no Brasil, que chegou a Joinville. Falar alemão se tornou algo proibido, e muitas escolas e estabelecimentos de origem alemã fecharam. 

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Schroeder, descendente direto de imigrantes alemãos, ainda era “moleque” quando isso aconteceu, mas lembra-se claramente do medo de seus parentes de falar o próprio idioma. Ele conta que até durante festas de aniversário a polícia podia aparecer para monitorar as comemorações.

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E a Lírica foi diretamente afetada por isso. Segundo o presidente, um interventor foi inserido na sociedade com o objetivo principal de garantir que os membros não falassem alemão. Assim, boa parte das atividades promovidas pelo grupo, sempre ligadas à música alemã, foram suspensas. 

O que manteve a Lírica de pé na época foi o teatro. Praticamente desativada, a sociedade só podia apresentar peças em português, deixando a tradição alemã de lado por anos. E, ainda assim, poucas peças podiam ser apresentadas; apenas as que não possuíam qualquer conteúdo ligado à cultura germânica. 

– Eles quase não conseguiram se manter de pé, – diz Schroeder, lembrando do período.

Osvaldo ainda conta que o coral só foi restaurado em 1951, seis anos após do fim da Segunda Guerra, em 1945. Por muito tempo, as famílias alemãs de Joinville tiveram medo de voltar a expressar sua cultura abertamente. 

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Construção da sede

Nem sempre a Lírica foi baseada no casarão enxaimel localizado na Rua Max Colin. Por muitos anos a sociedade foi nômade, saindo do salão de um de seus membros para várias outras “casas temporárias”. 

Até ter condições de sequer pensar em ter uma sede própria, a Lírica economizou por anos; foi apenas em 1960 que os membros se reuniram para decidir qual terreno comprar. Além de seus empregos fixos, o grupo organizava bailes e até serviam refeições para juntar dinheiro e finalmente começar a construção de sua casa. 

De 1969 para 1970, finalmente a Sociedade Lírica possuía uma sede própria. No entanto, ela não começou como o grande prédio que conhecemos hoje. Não, isso seria muito caro. Primeiro, foi construído um pequeno salão retangular, onde os bailes eram realizados. Como presente pela tão aguardada inauguração, um artista local presenteou a sociedade com um quadro da sede, que hoje decora o restaurante.

Pintura que decora sede da Associação Lírica em Joinville
Pintura que decora sede da Associação Lírica em Joinville (Foto: Isadora Nolf / Arquivo A Notícia)

Mais importante, no entanto, era que com o espaço o grupo poderia sediar eventos maiores, como os jantares. Este foi o procedimento por 15 anos: expandir a casa, organizar mais e maiores eventos, economizar o dinheiro e repetir até que, em 1985, a sede da Sociedade Lírica estava completa. 

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Atualmente, o espaço conta com um salão pequeno (onde tudo começou), um restaurante associado, uma recepção, um salão principal com palco, outro salão no segundo andar e, finalmente, uma sala de tiro ao alvo seta.

Com um espaço maior, natualmente a Lírica foi capaz de criar novos eventos e praticar novas atividades. Hoje em dia, além do Xant Chor, o coral adulto foi revitalizado e o grupo de dança folclórica agora é dividido nas categorias master, adulto e infantil.

Palco do salão principal da Lírica, em Joinville
Palco do salão principal da Lírica, em Joinville (Foto: Isadora Nolf / Arquivo A Notícia)

Entre os principais eventos organizados pela Lírica estão os Concertos Matinais, realizados em todo terceiro domingo do mês, e a Lírica Kneipe (também conhecida como Noite Germânica) onde os grupos de dança e coral se apresentam enquanto um jantar providenciado pelo restaurante é servido.

Participação dos associados

Ainda que toda a verba obtida durante os eventos organizadas pela Lírica fossem destinadas à expansão e manutenção da sede, a contribuição de seus membros também foi muito importante para mantê-la de pé. 

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Schroeder é, atualmente, o membro contribuinte mais antigo da sociedade, somando mais de 60 anos de contribuição. Sua família sempre fez parte da Lírica e seu irmão, Evelino Schroeder, chegou a ser presidente. 

Segundo ele, todos os membros da sociedade contribuíam frequentemente. Em um caso específico, a Lírica chegou a considerar um pedido de empréstimo a seus associados, para completar um investimento. Schroeder conta que, no entanto, a ideia virou uma doação da parte dos membros, que não fizeram questão de receber seu dinheiro de volta. Atualmente, a Lírica conta com 35 membros pagantes. 

Durante a história da Lírica, a participação da população joinvilense também colaborou para sua sobrevivência. Junto disto, diversos políticos de Joinville reconheceram a importância da sociedade e até doaram so próprio bolso, como Violantino Rodrigues e Wittich Freitag. 

Homenagens em comemoração aos 80, 90 e 100 da Lírica
Homenagens em comemoração aos 80, 90 e 100 da Lírica (Foto: Isadora Nolf / Arquivo A Notícia)

No entanto, algo que ainda preocupa tanto a diretoria da Lírica quanto seus membros é a dificuldade de capturar o interesse do público jovem. As crianças e adolescentes que participam da sociedade atualmente são os filhos e netos de membros antigos, que vivem em famílias que ainda preservam esta tradição. 

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Segundo Osvaldo, as crianças que hoje em dia fazem parte da Lírica já não sabem falar alemão, assim como muito membros adultos, apesar dos projetos internos e municipais que incentivam o aprendizado de costumes alemães desde a infância.

– Os membros da Lírica já são, quase todos, idosos. Uma hora nós vamos acabar. – diz Osvaldo, ao pensar no futuro da sociedade. Isso é refletido nos próprios grupos de dança: o master (para pessoas com mais idade) está bem estruturado, enquanto o adulto está desfalcado e o infantil está temporariamente desativado.

*Sob supervisão de Lucas Paraizo.

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