Quando Natália Furtado, de 31 anos, tomou a decisão de se assumir como realmente era, sofreu, e ainda sofre, com o preconceito por ser uma mulher trans. Ela teve de abrir mão do antigo emprego, onde atuava na área de engenharia, e foi excluída das relações de amizade e da família. A mudança de gênero fez com que ela ficasse completamente sozinha, sem afeto e apenas na companhia de uma depressão.

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A vida de Natália só começou a mudar quando conheceu a Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (Adeh) de Florianópolis. Foi lá que ela aprendeu a se olhar no espelho e se aceitar, saber quais são os seus direitos, encontrou apoio psicológico, afeto e orientação.

— Depois que virei trans não tinha com quem me relacionar e precisava explicar para a minha família o que estava acontecendo. A Adeh tem um grupo de conversa em família e isso foi muito importante para eles me aceitarem melhor, para me entenderem. Lá tem pessoas que eu me identifico, que respeitam o meu gênero, que me dão suporte e onde eu posso ser quem realmente eu sou, sem ser julgada — diz Natália.

Após um ano e meio sendo atendida pela equipe da Adeh, Natália se reergueu. Hoje ela criou laços de amizade com pessoas que a aceitam, trabalha como programadora e tem uma relação melhor consigo mesma.

— Fui achando que era possível, acreditando. Não me sentindo tão triste e tão sozinha, vendo o exemplo de outras pessoas que conseguiam algumas coisas, e isso foi me motivando. O apoio da Adeh foi fundamental para eu ter forças para tomar decisões e me ajudou na depressão — conta.

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Há 26 anos defendendo vidas

A Associação em Defesa dos Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade (Adeh) de Florianópolis atua desde 1993 na defesa dos direitos e combate as violências contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTs) e mulheres cis. Atualmente, são atendidos mais de 70 casos de vítimas de violência por mês.

A entidade oferece serviços de acolhimento, acompanhamento psicológico, assessoria jurídica e realizam rodas de conversa com familiares de forma gratuita. Os profissionais e estagiários das áreas do direito, psicologia e assistência social trabalham de forma voluntária por meio de parcerias com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e a faculdade Cesusc.

A Adeh também promove o Festival de Cinema LGBT, que está em sua segunda edição, cursos de defesa pessoal, teatro e profissionalizantes. No entanto, a entidade corre o risco de fechar as portas por falta de dinheiro e apoio. A associação tem até o dia 10 de maio para deixar o espaço que ocupa em um prédio na Rua Trajano, no Centro da Capital. O prédio pertence ao governo do Estado e as salas comerciais são cedidas à diversas entidades, como a Adeh. Ela não paga aluguel, mas precisa arcar com o condomínio, além das despesas com água, luz e internet.

Coordenadora geral da Adeh desde 2014, a assistente social e DJ Lirous K'yo Fonseca Ávila, de 37 anos, explica que, por conta das dificuldades financeiras, a entidade está com o condomínio atrasado e já chegou a negociar algumas parcelas, mesmo assim não deu conta. Por isso, eles receberam uma ordem de despejo e têm até esta sexta-feira (10) para desocupar o local.

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Lirous conta que tentou uma conversa com o governo, mas não conseguiu e agora terá que entrar com recurso na Justiça através de um advogado. Ela acredita que, muito mais do que um problema de condomínio atrasado, a questão envolve preconceito por parte do governo por causa do trabalho desenvolvido pela associação em prol da população LGBT.

— Percebemos que tem uma certa pressão para que a gente saia daqui, porque atendemos a população LGBT. Tem instituições aqui no mesmo prédio que devem muito mais do que a gente e não receberam ordem de despejo. Acredito que há preconceito porque senão as outras instituições também deveriam estar saindo — argumenta Lirous.

Se a entidade não conseguir reverter a situação, não terá para onde ir, nem mesmo onde colocar os móveis.

— Desenvolvemos diversas atividades que podem ser comprometidas por falta de empatia desse governo — lamenta Lirous.

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Lirous com a ordem de despejo em mãos (Foto: Leo Munhoz / Diário Catarinense)

Dificuldades financeiras

A Adeh enfrenta uma onda de dificuldades financeiras há algum tempo. Segundo Lirous, que coordena a Adeh desde 2014, o Ministério Público acionou a entidade porque duas prestações de contas, de gestões anteriores, não foram aprovadas e a Justiça determina que a entidade devolva o valor de R$ 157 mil. Na época, a Adeh captava dinheiro de editais públicos para desenvolver projetos.

— O Ministério Público queria que só eu pagasse, mas isso não tem condições, porque não posso responder por gestões anteriores. Consegui justificar e argumentei com o MP, eles então dividiram em três partes e as outras pessoas também serão chamadas para responder o processo — explica.

Por conta disso, a entidade está impedida de participar de editais para angariar recursos públicos para manter os serviços. Diante desse cenário, em 2016 e 2017 a Adeh criou um projeto de economia solidária, investiu na compra de máquinas para produzir produtos personalizados como canecas e botons, e o dinheiro arrecadado era dividido entre toda a equipe envolvida, cerca de 12 pessoas.

— Estávamos muito bem com o projeto de economia solidária, e não precisaríamos mais de nenhum edital para sobreviver — conta Lirous.

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No entanto, o MP recebeu denúncias de desvio de dinheiro dentro da entidade e algumas das determinações era para que a Adeh contratasse um contador para prestar contas. Segundo Lirous, como o dinheiro era dividido entre os envolvidos no projeto, que tiravam, muitas vezes, o sustento dali, a entidade não tinha recursos o suficiente para pagar o profissional e comprar matéria-prima para continuar com a produção.

Com isso, o projeto caminha a passos lentos e a Adeh ficou sem fonte de recursos para manter os serviços e pagar as dívidas. Atualmente, a entidade tem uma despesa fixa de cerca de R$ 2 mil por mês.

— Esse valor não é muito pelo trabalho que desenvolvemos e a quantidade de pessoas que temos (cerca de 20 funcionários). Mantemos a entidade com um pouco de doações e a tentativa de manter o projeto de economia solidária — diz.

Atualmente, a dívida total da Adeh é de R$ 14 mil de condomínio e R$ 157 mil de prestação de contas reprovadas.

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O que diz o Estado

O governo do Estado, por nota, informou que cedeu o espaço para a entidade em 2013 por meio da assinatura de um termo de cessão de uso. O documento prevê algumas obrigações por parte da associação, como o pagamento de todas as despesas de condomínio, impostos, taxas, contribuições e outros encargos. A Adeh só fica livre do pagamento mensal de aluguel.

No entanto, a empresa que administra o edifício acionou o Estado, responsável pelo imóvel, por causa do atraso nas parcelas do condomínio. Com isso, o governo ingressou com uma ação de reintegração de posse na 3ª Vara da Fazenda Pública da Capital para que o inquilino, no caso a Adeh, deixe o imóvel. O argumento do Estado é de que a Adeh não cumpriu com as responsabilidades estipuladas no contrato de cessão.

A assessoria de imprensa do governo afirma que não há preconceito com relação a entidade.

Ajuda

A Adeh recebe doações pela conta corrente do Banco do Brasil 11086-8, agência 5255-8, ou pelo site Apoia.se. Quem preferir ir direto na sede da associação, ela fica na Rua Trajano, 168, sala 303, edifício Berenhauser, Centro de Florianópolis. O atendimento é de segunda a sexta-feira, das 14h às 18h. Não é necessário marcar horário. Telefone: (48) 3371-0317 ou (48) 99817-2330.