Mãe, mulher e preta. É assim que Deh Bastos se apresenta nas redes sociais. A publicitária paulistana de 36 anos é uma das fundadoras do perfil @criandocriancaspretas no Instagram. Ela conta que a ideia veio com a maternidade, a partir da preocupação em criar o filho dentro da cultura negra, “fazendo com que ele tivesse orgulho dessa identidade”, nas palavras dela.
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O perfil conta com mais de 70 mil seguidores e tem conteúdos que abordam a educação e a cultura antirracista para crianças.
– A esperança é o pilar do mundo – diz um provérbio africano publicado no perfil.
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Há alguns dias, Deh assumiu temporariamente a conta do Instagram da atriz Giovana Lancelotti, que tem 8,8 milhões de seguidores, para tratar de questões raciais. A ativista diz que foi uma experiência válida, e que serviu para mostrar como o racismo é naturalizado:
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– O post que ela anunciou a minha participação teve 908 comentários e 195 mil curtidas. O meu primeiro post, falando dessas questões, teve 96 comentários e 12 mil curtidas. O que isso significa? As pessoas não querem falar sobre isso, elas não querem ouvir sobre isso, isso não é uma questão para elas. As pessoas não querem falar sobre isso. Mas a gente insiste!
Entre outros assuntos, na entrevista por telefone Deh comentou sobre como os brancos devem agir na luta contra o racismo e sobre qual o sonho dela.
Confira na entrevista a seguir:
Como surgiu a ideia de criar o perfil @criandocriancaspretas?
Eu já tinha uma comunidade sobre maternidade, chamada “Materna Rede”, que falava sobre criação de filho. Aí, quando meu filho fez mais ou menos um aninho, comecei a pensar como é que eu iria criar uma consciência preta no meu filho, dentro de um universo que tem muita gente branca, como é que eu fazer para criar esse legado para o meu filho. E aí, começou com a festa de aniversário. Fiz uma festa chamada “O pequeno príncipe preto no reino de Wakanda”. Era uma festa política, pra dizer que a partir daquele momento eu estava com a preocupação de criar o meu filho dentro da cultura preta, fazendo com que ele tivesse orgulho dessa identidade. E aí, quando acabou a festa , conversando com uma amiga que é jornalista, comecei a compartilhar na internet as nossas conversas sobre crianças e racismo e fomos entendendo também o quanto nos faltou informação quando criança e como a gente vê isso de forma diferente com as crianças.
Aí, veio também as famílias com crianças brancas, que na verdade, também acreditam nesta educação antirracista e a gente foi trocando essa experiência, conversando, construindo essa comunidade de educação antirracista.
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Como você vê as manifestações antirracistas e o Movimento Vidas Negras Importam?
Sinto muitas coisas sobre isso. A princípio, como mulher negra, dá um pouco de frustração quando as pessoas descobriram no último mês o que era a nossa vida inteira. Então, você fica um pouco frustrado por que quantas vidas são perdidas diariamente no Brasil? As vidas negras só importam quando elas não estão mais vivas. E isso é muito desesperançoso, muito frustrante. Mas, por outro lado, eu que sou uma pessoa esperançosa, acredito que toda oportunidade de a gente falar sobre essas questões é válida. Então, veio junto com esse desdobramento uma onda de pessoas querendo aprender, querendo entender, querendo lutar contra isso. Acredito nisso. É dúbio. Dói, é frustrante, é revoltante, e tenho medo muito grande que isso seja só uma onda, que seja só uma coisa passageira e não tenha ações. Porque o antirracismo é só sobre ação. Nenhuma atitude que não seja ação na prática – ação socioeconômica, de educação –, enquanto a gente não tiver esse tipo de ação, as coisas não vão mudar o racismo, que é estrutural no Brasil.
Mas tenho uma ponta de esperança, que novos lugares possam levantar esse questionamento. Particularmente, fico muito na esperança de que os pais se liguem na importância que isso tem na educação dos filhos, tanto das crianças pretas, quanto das crianças brancas. Essa coisa do preto e do branco é fruto do sistema do racismo. A gente precisa se responsabilizar, entender. A Djamila (Ribeiro, filósofa) fala muito sobre “o que é lugar de fala”, afirmando que todo mundo está localizado socialmente.
Pretos e brancos, dentro dessa estrutura que nos separa por raça social, não por raça biológica, todo mundo tem um lugar. E a gente entender e passar a agir dentro desse lugar é de suma importância para a gente fazer essa engrenagem parar de funcionar. Porque enquanto as pessoas acham que racismo é só comportamento, é só manifestação do ódio, alimenta que o racismo é só isso, ele continua intacto, funcionando como engrenagem, nas instituições, na educação, nas religiões.

Como os brancos podem contribuir na luta contra o racismo?
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Primeiro entendendo que não há contribuição, no sentido altruísta, de caridade. A primeira coisa é tirar esse entendimento que a pessoa branca está ajudando na luta. Não há ajuda. E acredito que as coisas vão começar a mudar quando tiver essa tomada de responsabilidade. Sei que ela é difícil, porque ela é um processo social. Não são pautas pessoais. Não é só uma pessoa preta contra uma pessoa branca. Não é isso. É sobre qual é a capacidade que nós todos juntos temos de entender que essa responsabilidade é de todos.
Não sou uma estudiosa profissional, sou uma observadora social. Percebo que hoje um dos maiores desafios é a negação do racismo. Porque a democracia racial faz com que a gente creia que o Brasil não é um país racista. Muita gente diz “isso não existe”, “se a gente falar disso com as crianças, daí sim a gente vai despertar”, “somos todos iguais”.
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Então, como é que a gente combate uma coisa que as pessoas dizem que não existe? É tipo o coronavírus, né? Enquanto a gente está vendo 50 mil pessoas morrendo, existe um representante do Estado que diz que isso não existe da forma que a gente está vendo. O desespero é o mesmo: as pessoas estão morrendo e tem muita gente dizendo que “isso é só uma gripezinha”.
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Acredito muito que essa negação (do racismo) está ligada à educação, faz com que as pessoas não assumam a responsabilidade do combate. E pra assumir a responsabilidade você precisa reconhecer os privilégios, todas as falhas que a gente teve até agora, toda a crueldade que a história racista fez com o povo preto, como o racismo desumaniza as pessoas pretas e as torna invisíveis socialmente. É muita coisa para ter que admitir. Quando isso acontece, essa pessoa começa a agir não pela luta, porque ela entende a responsabilidade social dela.
Há alguns dias, você assumiu temporariamente a conta do Instagram da atriz Giovana Lancelotti, que tem 8,8 milhões de seguidores, para falar de questões raciais. Como foi essa experiência?
Essa experiência foi por uma ação chamada “Vozes Negras Importam”, que foi feita por um grupo de mulheres da comunicação do Brasil inteiro, o que a gente chamou de match, de um encontro. A gente encontrou uma conta de grande visibilidade e colocou um produtor de conteúdo negro. O processo todo foi muito válido, mas posso fazer algumas observações bem interessantes para a gente entender como o racismo funciona de forma naturalizada. Por exemplo, uma conta que tem quase nove milhões de seguidores e com engajamento muito alto nas fotos publicadas por ela (Giovana Lancelotti). O post que ela anunciou a minha participação teve 908 comentários e 195 mil curtidas. O meu primeiro post, falando dessas questões, teve 96 comentários e 12 mil curtidas. E essa foi a média de todos os outros posts, teve um baixo engajamento.
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O que isso significa? As pessoas não querem falar sobre isso, elas não querem ouvir sobre isso, isso não é uma questão para elas. E aí a gente volta lá para a negação do racismo, para a falta de responsabilidade das pessoas no combate. Foi uma experiência válida, porque a Giovana foi uma querida, me deu carta branca, trocou comigo, conversou, queria aprender o tempo todo. Mas, em compensação, teve a parte da falta de engajamento sobre o assunto. As pessoas não querem falar sobre isso. Mas a gente insiste!
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Qual foi o episódio de racismo mais marcante que você enfrentou?
Me descobri uma mulher negra já adulta e sou uma negra com a pele clara, então tenho uma maior “passabilidade”. Comigo os episódios de racismo não são explícitos. Teve uma vez só. Eu tinha sofrido um aborto, e fui para a casa da minha mãe. Eu estava com uma roupa muito simples, um moletom – que é uma preocupação que as pessoas brancas não têm, qual a roupa que vão sair de casa –, entrei no meu carro e fui pra casa da minha mãe, que fica em uma outra cidade. Parei no meio do caminho, num posto, e fui a uma farmácia para comprar uma água. Quando eu voltei, eu não achava a chave do meu carro. Daí botei a mão na maçaneta do carro, para ver se abria, e o segurança começou a gritar: “Ei, ei, o que você está fazendo aí?”. Porque não passou pela cabeça dele que eu teria um carro novo, daquele tamanho, uma SUV. E eu, que já falava sobre isso, já estudava sobre isso, fiquei completamente imobilizada. Numa mistura de dor e de raiva. Eu não soube reagir.
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E essa experiência me fez pensar: “Se eu não soube agir, com 30 e poucos anos de idade, o que passa uma criança?”. Essa escolha de falar sobre as crianças é porque elas passam por isso todos os dias, o tempo todo, e elas não conseguem, às vezes, falar. Não consegue entender e não conseguem expressar o que elas estão sentindo.
No discurso lendário de agosto de 1963, Martin Luther King dizia ter sonhado com uma sociedade justa, livre e fraterna. E para você, qual é o seu sonho?
Sonho que as crianças pretas tenham paz. Paz mesmo. Paz de viver, nas escolas principalmente. Porque a escola é um lugar infernal para uma criança preta. Paz só para ser criança e não precisar gritar na rua por justiça e paz, como no vídeo de uma garotinha americana. Queria que as crianças pudessem sonhar, porque a gente só consegue sonhar com o que a gente enxerga. E as crianças pretas, na maior parte, a vida delas é sobre violência, invisibilidade. Então, como é que sonha numa situação dessas? Meu sonho é que as crianças possam ter paz e que possam sonhar em ser o que elas quiserem. É o que me faz continuar.
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