No dia em que se preparava para receber pela segunda vez um superastro da música mundial, o ex-beatle Paul McCartney, Florianópolis e região foram surpreendidas com uma série de ataques. No início da tarde de sábado (19), carros incendiados bloquearam acessos importantes, inclusive os que levavam à região do show, quase que simultaneamente. A Via Expressa, na entrada da cidade, e a Avenida Mauro Ramos, no Centro da Capital, foram bloqueadas com pneus incendiados e barricadas. A 40 quilômetros dali, em Tijucas, um caminhoneiro teve o veículo atingido por um tiro e três carros de motoristas que trafegavam pela BR-101 foram incendiados no meio da pista, bloqueando a principal rodovia do Estado por mais de uma hora.

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Os episódios fizeram o Estado reviver o fantasma dos ataques provocados por facções criminosas. Embora a principal facção catarinense tenha surgido em 2003, na Penitenciária de São Pedro de Alcântara, na Grande Florianópolis, a primeira vez em que o Estado admitiu e precisou lidar abertamente com a existência dessas organizações ocorreu após as primeiras ondas de atentados, entre 2012 e 2014.

Na época, uma crise no sistema prisional desencadeou incêndios a ônibus e automóveis que levaram noites de terror ao Estado e exigiram uma força-tarefa das polícias para conter os atos. Em 2014, o maior julgamento da história de Santa Catarina condenou 80 acusados de uma facção criminosa catarinense pelos atentados daquele período.

Anos mais tarde, com a facção catarinense fragilizada pela prisão e condenação de seus líderes, o Estado assistiu a novos conflitos quando uma organização criminosa que atua em presídios de São Paulo tentou ocupar áreas de tráfico de drogas dominadas pela organização criada em Santa Catarina.

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A investida começou por Joinville, cidade mais próxima ao Paraná, onde a facção paulista já tinha maior estrutura e fez a cidade ter 127 mortes em 2016. No ano seguinte, a disputa de facções chegou a Florianópolis. A capital catarinense teve recorde de mortes naquele ano (149), com casos emblemáticos como decapitações filmadas e um assassinato a tiros em pleno dia no Mercado Público.

A aproximação da facção catarinense com um grupo estruturado do Rio de Janeiro, adversário da organização paulista, acentuou a rivalidade entre os criminosos. Na ocasião, uma mudança na estratégia de segurança pública com operações concentradas em zonas críticas do Norte da Ilha contribuiu para uma estabilização na onda de violência.

A mais recente crise com ataques e disputa de facções criminosas no Estado interrompeu um período de seis anos sem confrontos nas ruas. Como revelou o colunista da NSC, Ânderson Silva, o episódio da vez teve como estopim a morte de um produtor cultural catarinense em São Paulo. Ele passou por formação no Exército dos Estados Unidos e tinha condenação por homicídio em Santa Catarina.

Motivação e saldo das barricadas

O assassinato teria levado a facção catarinense a tentar tomar o domínio do tráfico de drogas na região do Papaquara, no Norte da Ilha, área dominada pela organização criminosa paulista. Foram duas investidas em dois dias seguidos, entre sexta-feira (18) e sábado (19).

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Segundo a Polícia Civil de Santa Catarina, as respostas da polícia ao impedir a invasão e prender criminosos teria feito com que pessoas ligadas a esse bando pedissem ajuda para bloqueio de vias e incêndio a veículos. A intenção, ainda conforme a instituição, seria dispersar a atenção dos policiais para permitir que os membros do grupo escapassem do cerco policial.

O saldo dos atentados foram 21 pontos de incêndio combatidos pelos bombeiros na região de Florianópolis, incluindo sete carros e até um ônibus queimados. A resposta da polícia resultou em 19 prisões em flagrante de criminosos envolvidos com a invasão no Papaquara ou com os ataques em outras regiões. No total, 18 delas já foram convertidas no dia seguinte em prisão preventiva. Eles poderão responder por participação em organização criminosa, incêndio criminoso e tráfico de drogas. Um dos envolvidos foi morto em confronto com a polícia.

Também foram apreendidas 400 munições, carregadores de pistola, dois carregadores de fuzil com 50 munições, sete pistolas, armas de calibres diversos e telefones celulares — os aparelhos serão periciados e utilizados pelas equipes de investigação do Ministério Público de Santa Catarina (MPSC).

As investigações seguem para identificar outras pessoas envolvidas nas barricadas e incêndios criminosos feitos no fim de semana.

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Era possível prever os ataques criminosos?

A Guarda Municipal atuou com monitoramento no local dos incêndios (Foto: Carol Fernandes, NSC)

Uma das principais perguntas que sucederam os ataques do último dia 19 foi por que o setor de inteligência das polícias não conseguiu prever ou antecipar os ataques que causaram confusão e interditaram rodovias no dia do show de Paul McCartney, que reuniria 33 mil pessoas na capital catarinense.

O delegado-geral da Polícia Civil de Santa Catarina, Ulisses Gabriel, afirmou em entrevista à CBN Floripa nos dias seguintes aos ataques que não houve identificação prévia das barricadas porque isso não teria sido algo programado.

— Quando algo é desorganizado e não foi previamente ajustado, não tem como se identificar previamente. Tem como responder — afirmou.

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O chefe da Polícia Civil afirma que os incêndios a carros e pneus em vias públicas não teria sido orquestrado pelas facções, mas seriam gestos de “apoio de um amigo ou outro” para que os envolvidos no cerco policial no Papaquara pudessem escapar. Na análise do delegado, se a ordem tivesse partido da facção o ato seria identificado pelas polícias e resultaria em penas ainda maiores para as lideranças desses grupos — o que não seria de interesse do grupo.

O delegado-geral confirmou que as facções disputam o controle de pontos de vendas de drogas, o que resulta em conflitos, mas diz que os fatos de sábado surgiram após a resposta da polícia à tentativa de invasão da facção catarinense.

— O que ensejou essa situação não foi uma guerra efetiva de facções, foi uma ação dura do Estado com relação a criminosos, que para tentar desviar a atenção do Norte da Ilha começaram a praticar atos de vandalismo na Grande Florianópolis — detalhou, em entrevista na segunda-feira (21) à NSC TV.

Ulisses Gabriel avaliou que a resposta rápida aos ataques, com 19 prisões no total, ajudou a conter os atentados ainda na tarde de sábado.

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— Se a gente fosse omisso ou não tomasse uma atitude rápida, até hoje estaríamos com locais incendiados. Eu penso que quanto mais rápido a gente age para debelar, menos isso escala e mais as coisas são resolvidas — pontuou, em entrevista ao jornalista da NSC, Renato Igor.

O comando da PM também sustentou que as barricadas não foram identificadas antes porque não foram algo planejado, mas ressaltou o fato de que o trabalho policial evitou confrontos.

— Conseguimos evitar um confronto entre organizações criminosas que poderia ser algo catastrófico, uma troca de tiros em um local linear, em que pessoas inocentes poderiam ser atingidas. Nisso a inteligência atuou e nós fomos firmes para evitar que isso acontecesse, e evitamos — defendeu o subcomandante-geral da PM em Santa Catarina, coronel Alessandro José Machado, também à rádio CBN Floripa.

Policiais de folga foram convocados para reforçar a segurança da região, que já estava em operação especial em razão do show de Paul McCartney. Desde a tarde do último sábado nenhum novo ataque ou barricada foi registrado no Estado.

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SC e o Rio de Janeiro

O chefe da Polícia Civil também afirmou que é perguntado frequentemente se o Estado “vai virar um Rio de Janeiro” após ocorrências como as de sábado, mas faz questão de frisar que não.

— Aqui não tem milícia. Combatemos a corrupção nas duas corporações. As forças policiais são muito duras contra a criminalidade. Temos polícia forte, a corrupção policial é quase zero e quando tem, são expulsos. As respostas das instituições a um caso como esse resolvendo em poucos minutos demonstra o quanto a segurança está organizada — defendeu.

O governador Jorginho Mello falou ainda no dia dos atentados em um tom de linha dura contra as organizações criminosas:

— Não damos moleza para bandido.

O Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) afirma atuar no combate a organizações criminosas com oito grupos regionais do Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate às Organizações Criminosas) e o CyberGAECO.

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Desde 2020, foram 22 operações no combate às facções, com 891 mandados de busca e apreensão, 546 de prisão, além de 18 prisões em flagrante, com apreensão de drogas, armas, veículos e R$ 700 mil em dinheiro.

“Uma das prioridades do Gaeco é o combate a facções, além da atuação dos promotores de justiça criminais em todo o Estado envolvendo organizações criminosas nas investigações da Polícia Civil”, informou, em nota, o procurador-geral de Justiça de Santa Catarina, Fábio de Souza Trajano.

A reportagem tentou ouvir o comando da Polícia Militar e a Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina (SSP-SC) ao longo desta semana sobre os ataques, mas as assessorias negaram os pedidos. A PM alegou que o comandante-geral não tinha horário na agenda, e a assessoria da SSP-SC disse que ele não falaria no momento por decisão da Secretaria de Comunicação.

Veja fotos dos ataques recentes em SC

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A resposta e os desafios após os ataques

Superado o desafio de conter a escalada da violência no dia das barricadas, as polícias devem identificar responsáveis e investigar facções com uso de inteligência.

A resposta das polícias após as barricadas e incêndios da última semana são avaliadas como reações eficientes por especialistas. O coronel Eugênio Moretzsohn, professor e especialista em Inteligência, afirma que as ações policiais indicam que o serviço de inteligência gerou alerta sobre os ataques do último fim de semana e deixou efetivo policial disponível, o que evitou uma situação de maior gravidade.

Ainda assim, ele afirma que o episódio registrado no dia do show de Paul McCartney pode ter deixado uma lição a ser aprendida.

— Nas vésperas de eventos grandes, reforços de outras cidades são bem-vindos antecipadamente e deverá haver intensificação no policiamento ostensivo, com barreiras policiais nas vias e rodovias, como dissuasão. Teria sido muito grave se alguma intercorrência prejudicasse a segurança das pessoas e o andamento do evento, o que, graças à rápida e eficiente resposta policial, não ocorreu — avalia.

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O advogado criminalista Rodrigo Oliveira de Camargo, doutor em Ciências Criminais e professor de Direito do Centro Universitário Cesusc (Unicesusc), afirma que em situações como a do último sábado o papel do Estado é justamente evitar que os episódios de violência se multipliquem.

— É conter imediatamente [os atos] para evitar a escalada de violência. Em alguns casos, começa na rua, mas acaba nos presídios, os apenados “fecham” a cadeia. É isso que não pode acontecer — pontua.

A partir de agora, segundo eles, os esforços devem se voltar a atividades centrais das polícias e órgãos de segurança, como patrulhamento nas ruas e investigações sobre as facções.

— Se houver infração criminal, deve ser aberta investigação, com inquéritos e processos. Se tiver participação de presos, pode-se abrir processo administrativo disciplinar. Depois, é trabalhar com inteligência na prevenção, monitorar as movimentações [das facções] — pontua o advogado Camargo, que cita também medidas como melhora na condição de trabalho de agentes penitenciários e garantia de direitos dos apenados como ações importantes para lidar com o combate a essas organizações do crime.

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A cronologia dos ataques

Facções são desafio complexo no país

O problema das facções de forma geral é complexo no Brasil segundo os especialistas. Envolve por exemplo a política de drogas, principal fonte de recurso das organizações do crime e que segundo Moretzsohn faz do usuário um “acionista” da “sociedade anônima” do tráfico, mas cuja repressão por outro lado movimenta um mercado milionário de armas, coletes, viaturas, contratações policiais e de empresas de vigilância.

Mas o desafio vai além, envolvendo suspeitas de corrupção em instituições, condições problemáticas de presídios e outras atividades econômicas que o crime organizado passa a exercer, como tráfico de armas, roubos e até negócios “normais”, como postos de gasolina e redes de lojas.

O coronel Moretzsohn afirma que não é possível garantir que essas situações não se repitam porque as facções costumam reagir com violência em casos de morte de lideranças ou perdas de carregamento de drogas. Apesar disso, destaca que algumas sugestões podem ajudar a combater essas organizações e aprimorar o trabalho policial no Estado.

— Uma sugestão é que percebo que os policiais militares precisam melhorar atributos de comunicação interpessoal com a população. As guarnições passam em viaturas, a cavalo ou a pé e nenhum deles desembarca e puxa assunto com pessoas no ponto de ônibus, motoristas de táxi, frentistas de posto de gasolina, vendedores e demais pessoas que circulam e interagem com outros. Essa prática chama-se Inteligência Breve e permite a coleta de insumos junto a espectadores privilegiados — ressalta.

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O especialista cita também feedbacks do resultado das denúncias feitas ao 190 para os denunciantes e a estruturação de uma escola de inteligência na Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina, a exemplo do que ocorreu no Paraná, como medidas importantes para definir uma doutrina própria de segurança no Estado.

— Temos núcleos neonazistas, infelizmente, e organizações criminosas atuantes. Temos uma das cidades onde mais circulam dinheiro suspeito e cocaína no país, que é Balneário Camboriú. Temos importantes portos marítimos, portas de saída de drogas produzidas em países vizinhos. Portanto, capacitar em inteligência os integrantes das unidades dispersas pelos municípios é fundamental para assegurar a obtenção e a transmissão seguras de informes oportunos — acrescenta Moretzsohn.

O advogado Rodrigo Oliveira de Camargo cita ainda ações como a transferência de líderes das facções para presídios federais — medida já adotada com chefes do crime transferidos após os ataques de 2012 e 2013 em Santa Catarina —, o combate a celulares e a formas de comunicação feitas de dentro da cadeia e a própria melhora das condições das unidades prisionais, com oferta suficiente de trabalho e ressocialização, por exemplo, como medidas que devem ser adotadas no combate às organizações criminosas.

— Não existe um remédio pronto, são medidas conjuntas para tentar diminuir esse problema complexo — afirma.

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