Para quase todo mundo, 31 de março foi apenas mais um dia em que o sol se levantou em Joinville. Não para a menina Sara do Nascimento, de oito anos. Nesse dia, uma viagem a Curitiba rendeu um texto emocionado no seu diário de capa cor-de-rosa.
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“Olá, diário. Hoje foi uma manhã muito legal, e eu vi o sol nascendo, foi uma coisa como se fosse extraordinária, como se nunca tivesse acontecido”, escreveu Sara, com sua letra arredondada.
Para não perder o sol nascente, ficou acordada desde a hora em que o ônibus, levando ela e o pai, saiu de Joinville, de madrugada. Algo além das cores fortes no céu impressionou a menina: o encontro com o sol, que, sem querer, de alguma maneira, será sempre uma espécie de inimigo de Sara.
Ela não o via desde que tinha dez meses e foi com os pais ao Parque Zoobotânico. A menina pouco lembra do passeio, mas colou no diário uma fotografia daquele dia. Ela, um bebê de pele clara, no colo da mãe, Rosana; ao lado, o pai Tarcísio. E uma legenda: “Meu primeiro passeio no sol e único”.
Isso foi na época em que os pais começaram a consultar quatro médicos até saberem por que o bebê lacrimejava tanto e pintinhas surgiam por todo o corpo. Hoje, Sara sabe que os raios solares ferem sua pele e as lesões evoluem para um tumor mais rápido que o comum. A causa é uma alteração rara nos genes (o xeroderma pigmentoso) que deixa as células incapazes de reverter estragos no seu código genético.
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Sara tem de viver longe do sol para reduzir o risco de câncer. É melhor que fique em locais com janelas cobertas, protegida por bloqueador solar e roupas especiais. Pelo menos sete médicos cuidam dela. Mas se engana quem a imagina uma menina reclusa ou tímida. Ao contrário. Quer ser cientista e bailarina, conhecer Paris. Herdou dos pais o gosto pelo cantor Paulo Ricardo, é popular na escola, tem um boletim invejável e zero problema em falar sobre a doença – basta que perguntem.
A diferença está no dia-a-dia. Lidar com o xeroderma (que Sara chama pelas iniciais XP) exige uma série de rituais que mobilizam a família. A doença definiu a decoração da casa onde ela mora com os pais e a irmã Maria, de três anos, no Aventureiro. As janelas foram trocadas por outras de moldura estreita. Árvores no quintal barram o sol. Rosana, de 31 anos, não pôde, como queria, pintar as paredes de “branquinho”, mas flores alegram o ambiente. Tarcísio, 31 anos, quer cobrir as lâmpadas com um plástico que barra raios ultravioleta. Antes disso, os pais tiveram de tomar uma decisão difícil. Deixar a filha ter uma vida normal, dentro do possível.
– Entramos em consenso com os médicos sobre cuidar do físico e do psicológico. A gente não poderia deixar ela na sala de aula, vendo os amiguinhos brincarem lá fora – conta Rosana, que na hora do recreio vai à escola para reaplicar o bloqueador solar.
“A Notícia” acompanhou um dia na vida da Sara e mostra um pouco da sua história.
A DOENÇA
No meio da história de Sara há uma disputa judicial. De 2005 a 2007, os pais dela fizeram três ações por meio do Ministério Público para que o SUS fornecesse remédios (o Aldara) e artigos de que ela precisa (roupas anti-UV, hidratantes e bloqueadores). Segundo a Justiça, a Prefeitura tem de garantir todos ou leva multa.
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O município tem recorrido das decisões. Os recursos chegaram em 2008 ao Tribunal de Justiça. Em relação a bloqueador e hidratante, a Prefeitura diz que são cosméticos, não remédios. Sobre o Aldara e as roupas, avalia ser responsabilidade da União. Em duas ações, os recursos esgotaram – um processo deve pedir reembolso à União.
– Não vamos recorrer mais, é um caso muito específico – diz a procuradora Simone Taschek.
Sobre o Aldara, o último despacho do TJ pede que a ação vá à Justiça Federal. Em 2007, o TJ suspendeu o fornecimento das roupas. Alegou que o custo com Sara prejudicaria outros moradores de Joinville. O kit sai a cada seis meses e custa R$ 2 mil. A decisão durou dois meses. O xeroderma pigmentoso (XP) é uma rara doença genética. Segundo a Sociedade Brasileira de Dermatologia, há um caso a cada 250 mil pessoas.
Em Santa Catarina, a geneticista Eliana Ternes Pereira, da UFSC, lembra de um caso registrado na Capital, há dez anos. Eram dois irmãos de uma mesma família. Quando as células sofrem um dano ao DNA (código genético), enzimas (um tipo de proteína) reconstroem a agressão. Assim, o resultado da exposição ao sol demora anos para se manifestar. Em quem tem XP, as enzimas não funcionam bem e os danos são mais destrutivos. Com o tempo, a pessoa tem de passar por cirurgias para retirada das lesões mais perigosas.
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Sara fez cinco para tirar lesões (nenhuma pré-cancerosa). Não há cura, apenas tratamento paliativo. A doença causa problemas a outras partes do corpo (como dentes e olhos). O maior reflexo é na pele, por ser o órgão mais exposto. Os raios ultravioletas do sol são uma das principais ameaças ao DNA das células.
Cuidados com a pele
Sara tem na cabeça um mapa da sua pele. Sabe quais pintas e lesões pedem atenção. Com a ajuda da mãe, monitora a pele com um aparelho que emite luz e amplia as pintas. Serve para notar se alguma aumentou, ganhou nova cor ou forma. Ao acordar, a menina passa sobre as manchas uma pasta amarela de cúrcuma (açafrão-da-índia, um tempero) e azeite de oliva.
– Tem cheiro de pimenta – diz.
O ritual é feito de manhã e antes de dormir. A aplicação é uma experiência – a família topou participar de pesquisa para comprovar o suposto poder do açafrão para curar lesões na pele. A esperança é que a pasta adie o uso de outro remédio, o Aldara, um gel que impede a reprodução acelerada das células em lesões. O gel tem reações colaterais – deixa a pele vermelha e causa inchaço.
– A cúrcuma é para evitar a lesão; o Aldara, é para evitar o câncer – conta a mãe.
Antes da escola, onde entra às 14h30, Sara toma banho (morno, para preservar a pele).
Sala de aula adaptada
Sara faz educação física no ginásio sem paredes da Escola Municipal Eladir Skibinski, que a acolheu desde o pré. É um raro momento em que fica (quase) ao ar livre de dia, além do recreio. A direção agenda a educação física para as últimas aulas, quando o sol está mais ameno.
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A sala tem blecautes nas janelas da sala e dois condicionadores de ar, para compensar as janelas fechadas. Professora de Sara em 2008, Elizabete Spirandelli participou das mudanças na sala.
– A gente concluiu que tinha que proteger ela, por ser um caso raro. Alguns pais não gostaram de ver os filhos numa sala fechada, então eles mudaram de turma.
Os colegas de Sara ajudam a fechar as frestas que aparecem.
– A Sarinha é simpática, sempre divide quando pede pra lanchar comigo. Tenho pena porque ela diz que o sonho dela é ir à praia, mas ela é bem alegre – diz uma colega.
No recreio, às 16h30, o pai ou a mãe aparece para lembrar a menina de reaplicar o bloqueador.