A primeira vez foi nos anos 70. Dois tapas na cara, uma mão metida no bolso da calça jeans, usada pela primeira vez e comprada com dinheiro contado, e a decepção por nada encontrar. Estávamos na porta da padaria do Seu Antônio, em frente à Praça Santos Dumont, na Gávea, Zona Sul do Rio de Janeiro, e a polícia sempre que passava e via jovens negros conversando repetia a violência.

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Ainda naqueles anos 70, de governo militar, repressão e história por contar, atravessei a mesma praça de madrugada. Recém-saído da adolescência, já trabalhava e ganhei de Vanda, meu primeiro amor, uma sandália em embrulho de presente. Não abri e quando caminhava em direção à casa, no 278 da Major Rubens Vaz o camburão, lentamente, passou a me acompanhar. Eram duas da madrugada e, em frente ao portão, fui abordado: “Abre o embrulho”, gritou o que dirigia com a certeza da impunidade. Refutei e a luz da sala acendeu.

De pijama, eles viram surgir um homem frágil fisicamente e forte moralmente: “O que está acontecendo aqui?”, perguntou o homem. “Esse moleque não quer abrir o embrulho e diz que mora ai”.

A resposta veio certeira como sempre foram as palavras daquele homem: “Esse moleque chama-se Paulo Cesar, mora aqui e é meu filho”. O camburão partiu e a dor ficou na minha alma. Anos de terapia contribuíram para poder contar esta história.

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Meu pai, Dilon, um Gaúcho de Osório, branco e de olhos azuis, casou-se com minha mãe, Edmea, negra, linda, nascida em Campos dos Goytacazes, em 1956, após um ano de namoro. Aprendi com os ensinamentos deste auxiliar de escritório e desta costureira, a ser quem sou. Conheço as entranhas e a perversidade do racismo brasileiro. Na medida em que ganhei visibilidade na profissão, ocupando cargos de chefia, muitas vezes ouvi que não era negro. “Moreno vai!”. Onde já se viu um Homem do Povo Preto ser Executivo? Era a mensagem passada, Assim é o cinismo do racismo à brasileira.

Ao virar comentarista e ser pessoa conhecida, o que é diferente de famoso, perdi a cor. Certa vez entrei em um restaurante e tive dificuldade para conseguir um lugar. Quando me reconheceram, apareceu o melhor lugar. Preferi ir embora. O racismo continua presente em minha vida. No último final de semana, véspera do crime cometido contra Vinícius Júnior, ao ficar lado a lado com uma mulher branca, a primeira coisa que ela fez foi apertar a bolsa no peito. Não me conheceu da televisão, percebeu a aproximação e reagiu ao ver uma pele preta. Segui em frente com mais uma dor na alma. Passei o sábado mal!

No domingo, ao ver a reação de Vinicius Júnior ao crime, fiquei bem. O jovem saído de São Gonçalo, Região Metropolitana do Rio, não se curvou e peitou os criminosos. Vinicius incomoda porque não aceita a caixa que os brancos querem colocá-lo. Reagiu, reage e reagirá.

O gesto de Vinícius a mim orgulha e emociona. Aos da nova geração empodera. A juventude do povo preto continua a ser abordada pela polícia, a ter olhares de desconfiança em estabelecimentos comerciais, a serem revistados fisicamente e mentalmente. Mas, agora, essa juventude tem Vinicius Júnior. E o que ele fez foi o maior golaço de muitos que ainda marcará.

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Ô sorte!

*Por Paulo Cesar Vasconcellos, comentarista de futebol do SporTV

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