Economista, Enéas de Souza é uma referência da crítica de cinema. O personagem de Os Filmes Estão Vivos (que será exibido na mostra Cinefilia, do Cine Santander Cultural, em Porto Alegre) voltou a Paris, cidade em que foi rodado o curta gaúcho, no fim de setembro. De lá, enviou respostas a nove temas cinéfilos propostos por ZH, expandindo conceitos desenvolvidos no filme de Fabiano de Souza e Milton do Prado.
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Confira as respostas de Enéas, que foram enviadas por e-mail:
1. Uma descoberta recente que vale a pena.
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“A renovação do cinema brasileiro, com alguns belos cineastas: José Padilha, Eduardo Coutinho, João Moreira Salles, Walter Salles, Luiz Fernando Carvalho, Claudio Assis, Kleber Mendonça Filho. Eles recuperam o extraordinário nível do Cinema Novo. O cinema brasileiro tem uma envergadura excepcional. Veja o caminho do documentário: fomos nós que o puxamos recentemente, do ponto de vista mundial. Ao mesmo tempo, o cinema brasileiro tem falado de forma crítica e permanente sobre a realidade brasileira.”
2. Um cineasta que estamos vendo mal.
“Não estamos vendo bem o cinema português. É verdade que o (diretor) Miguel Gomes encontrou, com Tabu (2012), uma bela acolhida. Mas Pedro Costa (de Juventude em Marcha) é desconhecido, ou quase isso, dos críticos e, sobretudo, do público.”
3. Um cineasta que, ao contrário, é festejado indevidamente.
“Não digo a crítica, mas o público gosta demais de Spielberg. Seu Lincoln (2012) é desinteressante. Até Daniel Day-Lewis está sem brilho, ele que é um ator de recursos fantásticos.”
4. Uma descoberta que os cinéfilos brasileiros deveriam fazer.
“Vou ser quase obscuro, mas existe um filme de Marguerite Duras, India Song (1975), que é extraordinário, sobretudo pela hegemonia do som e da palavra sobre a imagem. Trata-se, de algum modo, de uma continuação de Hiroshima, Meu Amor (1959), de Alain Resnais: o que eu chamei um dia de ?cinema-literatura? vai o mais longe possível.”
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5. Uma cinematografia ou uma época/escola que vale a pena se prestar mais atenção.
“O cinema francês pós-Nouvelle Vague, de Phillipe Garrel a Bruno Dumont. Ficamos tomados demasiado tempo pelo brilho de Godard, Truffaut, Resnais, Rohmer, Rivette, Chabrol. E a renovação veio com muitos bons cineastas, como o (Olivier) Assayas.”
6. Um cineasta ou um filme que você gostaria de debater num eventual volume 2 de Os Filmes Estão Vivos.
“A ideia do Fabiano e do Milton foi não discutir autores consagrados. Todavia, existem inúmeros cineastas que dinamizaram o cinema. Diria Hitchcock, Fritz Lang, Bergman, Manoel de Oliveira, Pedro Costa, Rosselini, Fellini, Visconti, Joseph Losey, toda a Nouvelle Vague etc. E, claro, a fertilidade histórica do cinema brasileiro, desde as chanchadas, os filmes da Boca do Lixo, o Zé do Caixão, os documentários, o atual cinema de Pernambuco e o nosso próprio cinema gaúcho.”
7. Algo que os cinemas de Paris têm e que Porto Alegre poderia ter.
“Não dá para comparar Paris com qualquer outra cidade. Na França, o cinema faz parte do pensamento. Qualquer filósofo (Badiou, Deleuze, Foucault, Clément Rosset, Merleau-Ponty, Sartre, Jean Luc Nancy, Kacem etc.) falou ou fala sobre cinema. Romancistas como Claude Simon, Marguerite Duras, Robbe-Grillet: todos filmaram para não só desenvolver cinematurgias, mas para destacar o tema da palavra e da imagem. Os artistas plásticos idem. Lembre-se o Ballet Mécanique (1924), de Fernand Léger, mestre de Tarsila Amaral. Ou seja, o cinema está na veia da cultura da França. É essa presença da temática da imagem na cultura contemporânea que estamos precisando adquirir. E isso não se dá sem uma efetiva política de cultura para o Brasil. Essa política começa quando pudermos juntar cultura e educação.”
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8. O impacto de novidades tecnológicas (Imax, 3D) na cinefilia.
“O mundo vai mudar profundamente com as novas tecnologias, embora as coisas ainda não estejam claras. O que se pode dizer é que o cinema comercial está tentando prolongar a sociedade do espetáculo com as novas magias disponíveis. Na verdade, hoje, o cinemão está perturbado com alguns fatos: as cópias piratas, o YouTube, o cinema experimental, os games. Uma coisa é certa: o cinema deixou de ser a arte popular do mundo. Não quer dizer que ele vai desaparecer. Mas vai assumir um papel semelhante ao que o teatro e ópera tiveram quando surgiu o cinema. Daí a necessidade de o cinema comercial produzir cada vez mais espetáculos para ver se a fantasia da imagem continua a capturar espectadores. A questão passa a ser como a sociedade vai se desvincular da banalização da cultura e absorver tanto a cultura clássica como a cultura digital, inclusive os ‘games de autor’, para dar um novo sentido ao mundo que está chegando.”
9. Um ciclo de filmes que a Capital ainda não viu e bem poderia ver.
“Teria uma lista enorme. Até mesmo os que já foram feitos deveriam ser repetidos, aperfeiçoados. A cultura é ver, escrever, pensar, discutir em conjunto, desenvolver permanente. Não é um adorno. É algo exterior à minha subjetividade, tem a ver com conviver com os outros. Ela é o incêndio e a iluminação da vida, mesmo contra a maioria equivocada do momento. Margareta Von Trotta mostrou isso em Hannah Arendt (2012). Só a cultura permite que a sociedade mude pela coragem de pensar como um dia Sócrates enfrentou Atenas, e Hannah Arendt, o Sócrates contemporâneo, enfrentou a tempestade resultante do julgamento de Eichmann. Os ciclos de cinema deveriam integrar o corpo da cultura de um país.