Fazia 45 minutos que Sandro Poeta e a esposa haviam começado o expediente na loja de artigos para motociclismo. Chega um homem bem-vestido, capacete na mão. Ela recepciona o cliente, o marido permanece junto à mesa de onde administra o negócio. Minutos depois, um motociclista para em um recuo à esquerda do estabelecimento. Deixa o motor ligado, desce e, armado, força a porta de vidro que o casal mantém chaveada em nome da segurança. A partir daí, tudo aconteceu muito rápido naquela manhã de uma sexta-feira de novembro do ano passado em São José, na Grande Florianópolis.

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No instinto, a mulher se abaixa. O suposto freguês dentro da loja anuncia o assalto, puxa a arma, aponta para o lado em que Poeta estava e aperta o gatilho. Um tiro perfura nove jaquetas penduradas em uma arara. Dois cruzaram o ar à direita do comerciante de 45 anos. Desconfiado porque o segundo sujeito não estacionara nas vagas em frente, ele já tinha pego a pistola Taurus PT 938 escondida entre gavetas, prateleiras e materiais de escritório. O único disparo que deu estourou o vidro da entrada. A reação inesperada pôs os ladrões para correr. O vizinho acionou a polícia e a dupla foi presa. Restaram marcas que vão além dos buracos de balas na parede dos fundos.

— Por mais preparado que se esteja, sempre fica uma espécie de trauma, aquilo martelando na cabeça — confessa o lojista.

Descontada a péssima pontaria de um dos bandidos, o caso de Poeta não acabou pior graças a uma arma. A história de João Marcos Buch quase terminou em tragédia por causa de outra. Aos nove anos, o futuro juiz de execução penal de Joinville levou um tiro no rosto – desferido pelo irmão de 10. Assim como os avós e tios, o pai, auditor da Fazenda, possuía armamento. Apesar de mantidas “com muito cuidado, longe das crianças”, conforme recorda o magistrado, um dia o zelo falhou. Os meninos acharam uma espingarda de caça carregada no sótão da casa na fazenda da família em Porto União, na divisa com o Paraná, e pensaram que seria divertido brincar de bangue-bangue com ela.

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Por acidente, o mais velho a disparou. Parte do projétil, tipo espalha-chumbo, rasgou o lado direito da face de Buch. O barulho atraiu os adultos. Ainda consciente, mas se sentindo “amortecido” pelo impacto à queima-roupa, o caçula só ouvia um zunido muito forte e não entendia o desespero das pessoas à sua volta. Então tocou a bochecha com a mão, notou o sangue e apagou. O cirurgião que o atendeu disse aos pais que o filho não havia morrido por milímetros: a bala “passou exatamente por onde deveria passar”, sem afetar nenhum órgão vital. Em 15 dias, o hospital lhe deu alta.

Dois anos após a infeliz ideia de bancar o caubói, ele fez plástica. Teria que se submeter a mais uma ao se tornar adulto. Não seguiu a recomendação médica até hoje, aos 47 anos, porque “não se mexe no que não está doendo”. Sem drama, garante que se lembra da cicatriz que lhe risca o rosto do canto da boca à orelha somente quando algum enxerido pergunta a respeito. Tanto quanto as feições de Buch, a fatalidade não consumada mudou a relação da família com armas.

— Nunca mais vi nenhuma na casa dos meus pais, me falaram que foram todas queimadas.

As situações envolvendo o garoto ferido e o comerciante corajoso ilustram o quão cheia de nuances é a discussão sobre armas de fogo. Sem uma pistola – e destreza para usá-la –, Poeta não teria como encarar os bandidos que tentaram assaltá-lo. Se o pai de Buch não tivesse uma espingarda – ou não vacilasse ao guardá-la carregada –, o filho não a encontraria pronta para matar. Não será agora, com a polarização ditando o tom do debate sobre qualquer coisa no Brasil, que um tema tão controverso irá reconciliar posições opostas.

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O Estatuto do Desarmamento está na mira do Congresso. Vários projetos circulam pela Câmara e pelo Senado com o intuito de modificar ou extinguir a legislação que, desde 2003, controla armas de fogo no país. O mais conhecido é o do deputado federal catarinense Rogério “Peninha” Mendonça (PMDB). Entre outras alterações, ele propõe diminuir de 25 para 21 anos a idade mínima para posse, substituir a renovação periódica do registro pela validação permanente e estipular requisitos mais objetivos para a obtenção do porte, atualmente proibido a civis (com exceção daqueles que comprovem a “efetiva necessidade”).

— O estatuto faz uma série de exigências que, mesmo cumpridas, ainda precisam de uma autorização da Polícia Federal (PF) para permitir que o cidadão de bem tenha arma. Isso é completamente discricionário, depende do delegado! Meu projeto acaba com isso — argumenta.

Nascido em Nova Trento, na Grande Florianópolis, Peninha formou-se em Agronomia em Pelotas (RS) e se mudou para Ituporanga, no Alto Vale do Itajaí, quando passou em concurso público para a Acaresc (atual Epagri). Em 1988, debutou na política como vice-prefeito da cidade pelo partido ao qual é filiado até hoje. Após três mandatos na Assembleia Legislativa (1998, 2002 e 2006), elegeu-se para a Câmara em 2010. Foi reeleito em 2014 com 138 mil votos. Na prestação de contas da última campanha, não aparece nenhum doador ligado à indústria bélica. E o revólver .38, adquirido na época em que rodava pelo interior como agrônomo, ele afirma que entregou à PF quando o estatuto entrou em vigor.

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Seu argumento para que o acesso a armas seja facilitado é simples: como criminosos não obedecem a leis, na prática o estatuto teria deixado a população à mercê da bandidagem. O ladrão que pensava duas vezes antes de invadir uma casa – ou uma loja, como a de Sandro Poeta – por medo de ser recebido a tiros não tem mais esse receio, pois são grandes as chances de a potencial vítima estar desarmada. Portanto, mais armas nas mãos das pessoas trariam mais segurança à sociedade.

Outro dado bastante utilizado pela bancada da bala é o aumento dos homicídios no Brasil sob a legislação vigente. De 48,1 mil em 2005, pularam para cerca de 60 mil em 2015, com uma média anual de 53,5 mil no período. Os números constam do Atlas da Violência 2017, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Logo, o estatuto não teria sido capaz de reduzir nem de estancar a violência.

— O Atlas da Violência também aponta as 30 cidades brasileiras mais pacíficas. Jaraguá do Sul é a primeira, Brusque, a segunda, e Blumenau, a 21a, entre os municípios com mais de 100 mil habitantes. Uma promove a festa dos atiradores (Schützenfest), outra tem o mais antigo clube de caça e tiro em atividade no país (Araújo Brusque, 151 anos) e a terceira é a que mais tem clubes de caça e tiro do Brasil (41) — acrescenta.

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Há ainda a vontade popular, expressa no referendo realizado em 2005. Em 23 de outubro daquele ano, os eleitores foram às urnas para responder se o comércio de armas de fogo deveria ser proibido no Brasil. O “não” ganhou do “sim” com 64% dos votos válidos – em Santa Catarina, conquistou 77%. Na análise de Peninha, a vitória refletiu não apenas a reprovação à questão levantada pela pergunta, mas à “ideologia sobre a qual se assentou a construção da lei do desarmamento”.

No final de setembro, segundo o deputado, a frente parlamentar de segurança pública se reuniu e ficou acertado que as matérias relacionadas à área serão votadas até novembro. Até lá, o colega Alberto Fraga (DEM-DF) irá propor um requerimento de urgência urgentíssima para o projeto do catarinense. O resultado refletirá para que lado pende a Câmara. Se o requerimento for aceito – é necessária a maioria absoluta, 257 votos, para isso –, a proposição vai à pauta no mesmo dia e Peninha já poderá ensaiar a comemoração, porque significa que há votos suficientes para aprová-la. Na última sondagem feita por ele, havia 151 a favor, 135 contra e 227 indecisos.

Por mais otimista que Peninha esteja – “muitos deputados preferem não se manifestar publicamente, mas acredito que o projeto será aprovado”, diz –, para cada razão brandida para desqualificar o rigor no controle de armas de fogo existem estatísticas, relatórios e pareceres abalizados que atestam o contrário. A começar pelo crescimento dos homicídios no Brasil. De acordo com o Mapa da Violência 2016, ainda que o índice tenha aumentado em quantidade, a alta ocorreu em percentuais menores com o endurecimento da legislação.

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Partindo da estimativa de que armas de fogo respondem por 70% dos assassinatos no país, o trabalho desenvolvido pelo sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz calcula que, de 1980 a 2003, o número de homicídios cometidos com pistolas, revólveres e afins subiu 8,1% ao ano. De 2003 a 2014, no entanto, essa escalada caiu para 2,2% anuais. “O estatuto e a campanha do desarmamento, iniciados em 2014, constituem-se em um dos fatores determinantes na explicação dessa quebra de ritmo”, conclui o estudo. A redução da taxa de crescimento evitou que 160 mil vidas fossem perdidas. É como se todos os moradores Palhoça tivessem sido salvos pela lei.

Integrante do FBSP, o doutor em Ciências Políticas pela USP Tulio Kahn teme que o desvirtuamento de “uma das poucas medidas que serviram para melhorar a segurança deste país” faça com que as mortes por armas de fogo se alastrem na proporção verificada antes de 2003. Em 30 anos dedicados ao assunto, seja na academia, seja em cargos em secretarias estaduais e organismos federais, ele aprendeu que “onde há mais armas, há mais homicídios; o estrago é feito pelas armas nacionais de baixo calibre, compradas legalmente e que terminam na mão dos criminosos; portá-las aumenta o risco de ser ferido ou morto em um assalto; e nenhuma política teve efeitos tão substanciais sobre a criminalidade quanto o estatuto”.

— Sua elaboração foi durante o período de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) na presidência (1995-2002), o fato de ter sido aprovado no primeiro ano da gestão Lula foi circunstancial. Não se trata, como às vezes ouço dizer, de “estratégia petista para preparar a revolução bolivariana no Brasil” — salienta.

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A pesquisadora Michele dos Ramos, do Instituto Igarapé – dedicado à integração das agendas da segurança, justiça e desenvolvimento, com sede no Rio de Janeiro e braços em mais de 20 países – destaca o investimento em outras frentes “muito mais eficientes e menos arriscadas para a própria população”. Como exemplo, cita o fortalecimento das capacidades de inteligência e investigação policial para o combate ao crime organizado e para que os crimes contra a vida sejam de fato esclarecidos e punidos.

— A reação armada não é recomendável, até porque sabemos que as condições de tensão e o fator surpresa da abordagem do criminoso acabam aumentando a vulnerabilidade da vítima, mesmo que ela tenha uma arma — completa.

A menção de Peninha à tradição trazida pelos imigrantes alemães que colonizaram o Vale do Itajaí não encontra muito respaldo como uma das justificativas para os baixos níveis de violência em algumas cidades da região. O presidente da Associação dos Clubes de Caça e Tiro de Blumenau, Moacyr Flor, nem arma tem. O dirigente assume gostar mesmo é de bocha. Para não dizer que nunca atira, de vez em quando ele brinca nas schützenfest.

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— Olha, eu apoio o projeto do deputado, mas não consigo ver ligação entre uma coisa e outra. O praticante de tiro esportivo não anda com arma na rua, só atira por esporte — afirma.

Atiradores, colecionadores ou caçadores registram seus brinquedinhos no Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma), que reúne também os dados dos artefatos de uso restrito do Exército e de magistrados, promotores e procuradores. Para as demais pessoas físicas, o caminho é o Sistema Nacional de Armas (Sinarm) da PF. A integração das duas bases, prevista pelo Estatuto do Desarmamento para incrementar as ações de rastreamento de armas apreendidas, não saiu do papel.

Cadastrar-se em qualquer uma das duas implica em apresentar uma série de documentos e passar por uma bateria de testes. No Sigma, o pretendente deve ser associado a alguma agremiação de caça e/ou tiro (colecionador está isento).

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O Sinarm dispensa esse quesito, mas não abre mão de uma entrevista com um agente credenciado pela PF para aprovação do processo – como o diretor da Academia de Polícia Civil (Acadepol) em Florianópolis, o delegado Laurito Akira Sato.

— Pergunto para quê ele quer uma arma. Se for defesa pessoal, pergunto se está sendo ameaçado, se mora em área de risco. Se for proteção ao patrimônio, pergunto se já foi roubado. Cada situação requer um treinamento específico. Conforme as respostas, autorizo ou não — descreve ele, que também é instrutor de tiro.

Por consequência, as pessoas estão procurando mais o Sigma. É menos complicado e elas já estão dispostas a aprender a atirar mesmo, para se proteger. O diretor da .38 Clube e Escola de Tiro, Tony Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, confirma: após o empreendimento fundado em 1992 quase desandar porque “a forma como o Estatuto do Desarmamento foi divulgado desmotivou as pessoas a terem armas, ficou parecendo que só a polícia podia”, o avanço da violência fez aumentar o interesse pelas aulas ministradas na sede, em São José.

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— O cliente chega dizendo que veio dar uns tirinhos para botar no Instagram, mas inconscientemente ele busca autodefesa — conta ele.

Antes, lembra Tony, os praticantes queriam um revólver, geralmente calibre .22. Mulheres acompanhavam maridos ou namorados contrariadas. Hoje, o/a iniciante pede uma pistola e elas vêm sozinhas ou em grupo de amigas. Sem falar que, nas primeiras vezes em que atiram, saem-se melhor do que eles por “prestar mais atenção nas instruções, enquanto os caras acham que já sabem tudo”.

O frequentador por lazer recebe orientações básicas e atira logo no primeiro dia. O clube fornece arma, abafador para os ouvidos, óculos e alvo. O plano básico custa R$ 120, com munição à parte. Incluindo munição, dobra o valor. O curso dura seis horas (três de aula teórica sobre mecanismo, funcionamento e leis), custa R$ 659 e dá direito a 70 disparos.

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— Noventa por cento dos alunos não têm arma, metade nem quer ter. Aquele que já tem ou é cria nossa, ou seja, comprou a arma depois de fazer o curso; ou é policial ou de outra profissão que trabalha armada.

Filho de delegado, Tony cresceu rodeado de revólveres, espingardas, pistolas. Aprendeu a atirar ainda criança, com o pai. Nunca teve nenhum acidente. A única regra era não brincar com arma carregada. Aos 11 anos, foi campeão brasileiro de tiro. Formou-se em Educação Física, ganhou títulos no jiu-jitsu, deu aula dessa arte marcial nos Estados Unidos e voltou em 2009 para tocar o .38. Anda sempre com uma Glock que, jura, nunca precisou usar para resolver alguma encrenca.

— O poder que uma arma dá só se torna problemático se o cara já tiver uma propensão à violência. Dizer que ‘puxou a arma, tem que atirar’ é mito, a arma funciona muito como intimidação. A última coisa que se vai fazer é atirar em alguém — afirma.

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O delegado Sato concorda. Ele ensina que em muitos casos os níveis de atuação com uma arma de fogo devem seguir uma escala de “uso diferenciado da força”, não “progressivo”. Da verbalização, pode ser obrigado a pular direto para o disparo, sem passar pelo controle físico ou golpes em regiões vitais. Com a experiência de quem instrui os profissionais responsáveis pela segurança da sociedade, aconselha ao cidadão que “leia e treine muito” se pretende ter uma arma. Sato tem três, duas funcionais e uma pessoal. Neste final de tarde de quarta-feira, em sua sala na Acadepol, em Canasvieiras, no Norte da Ilha, ele tira do coldre no tornozelo esquerdo uma pistola PT 24/7 .40 S&W, fornecida pela polícia. Pelo peso, o carregador não está vazio.

— Não é arriscado o senhor dar a sua arma carregada na mão de um desconhecido?

— Estou só de olho no seu polegar. Se você tivesse tentado destravá-la, eu já teria pulado no seu pescoço. Experimente, para ver se consegue.

Melhor não. Afinal, como diz Bam Bam, integrante de uma das gangues que tocam o terror no livro Breve História de Sete Assassinatos, de Marlon James, “as armas sempre precisam que a gente precise delas.”

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