O filme Inocência dos Muçulmanos está cercado de exageros. O maior deles é justamente ser chamado de “filme”. Os trechos disponíveis na internet contêm cenas de um mau gosto constrangedor, nas quais um elenco de filme B recita diálogos que parecem escritos para uma peça escolar de final de ano.

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Uma das cenas mostra um aparvalhado Maomé trocando impressões sobre sexo com um jumento. Consternada, sua mulher, Khadija, pede ajuda a um primo, que lhe promete criar um livro para Maomé, “uma mistura de versões da Torá e do Novo Testamento, mescladas com versículos falsos”.

Seja quem for o autor do Alcorão, deve-se reconhecer pelo menos que produziu obra mais inspirada do que Inocência dos Muçulmanos. Essa obscura produção é lamentável em termos cinematográficos, mas contém uma importante inovação em matéria de injúria.

Desde a Idade Média, o Islã foi associado ao desvio, à heresia, à bruxaria e à licenciosidade. Escritores como Flaubert e Nerval e pintores como Ingres e Gérôme viam o mundo islâmico como o reino da sensualidade. Nem o brasileiríssimo Machado de Assis escapou: numa crônica de 1876, na qual comentou o aparecimento da primeira constituição turca, o escritor qualificou o fim do harém do sultão de “uma das maiores revoluções do século”. “Aquele bazar de belezas de toda casta e origem, umas baixinhas, outras altas, as louras ao pé das morenas, os olhos negros a conversar os olhos azuis, e os cetins, os damascos, as escumilhas, os narguilés, os eunucos…”, escreveu.

Com a chegada das potências europeias ao Oriente Médio, o termo “fanático” passou a ser preferencialmente usado. A relação entre Islã e puritanismo, repressão e segregação sexual é mais recente, tendo sido disseminada depois da Revolução Iraniana de 1979 e, principalmente, do 11 de Setembro. A burka, traje típico das mulheres patanes do Afeganistão e do Paquistão, passou a ser vista como vestimenta “muçulmana”.

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Se o leitor chegou à idade adulta depois de 2001 e não tem conhecimento de primeira mão sobre o mundo islâmico, provavelmente tende a imaginar que os muçulmanos são um raro tipo de ser humano que não gosta de sexo. O Maomé sanguinário, truculento e meio aloprado de Inocência dos Muçulmanos não se enquadra na moldura pós-11 de Setembro. Pertence a um Oriente permissivo e semibárbaro, que pareceria familiar a Dante, Shakespeare e Machado de Assis.

O mundo do pensamento é parecido com o do prêt-à-porter: certas ideias, assim como determinadas cores e estampas, sempre voltam. É inútil se perguntar se os muçulmanos preferem uma ou outra versão. Nesta coleção primavera-verão, eles entram como motivo, não como público.