Ele fala e a saudade fica transparente em seus olhos muito azuis. Cada lembrança desperta sorrisos, ao recordar dos amigos e da vida boa de então, mas também uma pontinha de tristeza, por saber que aquela é uma Florianópolis que ficou no passado.

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O artista plástico manezinho Átila Ramos – que não gosta de revelar a idade, mas confessa ter vivido os bons tempos boêmios da Capital – é um homem generoso: decidiu compartilhar as suas melhores recordações com o público. Desde ontem, no Palácio Cruz e Sousa, a exposição Bares de Florianópolis está aberta à visitação>

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São 30 aquarelas e sete telas, que mostram alguns dos bares mais importantes da história da Capital. Estão lá o Poema Bar, o Petit (atual Noel), o Ponto Chic, o Bar Alvorada, o Bar do Filinto, o Bar Rosa e o inesquecível Miramar, entre tantos outros que marcaram época na cidade e que tinham público cativo, todas as noites – e que muitas vezes varava a madrugada.

Para recriar os ambientes o pintor baseou-se em fotografias antigas, mas valeu-se principalmente da sua memória afetiva. Cada desenho, cada traço e cada personagem ilustrado, carrega uma emoção e muita saudade. Na sala de exposições, ao mostrar os quadros aos visitantes, Átila Ramos vai tecendo comentários, como se voltasse no tempo:

– Esse aqui era o Petit, local de concentração da banda Amor à Ilha durante o Carnaval. Aquele ali era o Bar do Segundo, na subida do Morro da Caixa, onde foi fundada a Copa Lord. A Confeitaria do Chiquinho vendia a melhor empadinha de camarão da cidade, até hoje inigualável. O Kibelândia era (e ainda é) famoso pelo chope servido na pressão e pelo kibe cru…

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E assim, de pintura em pintura, o artista recriou a história da cidade e de sua gente. Átila Ramos nasceu e cresceu no bairro Saco dos Limões e pertencia à turma do A Roda Bar, localizado na Rua Trajano, bem no Centro. Ele cursava Engenharia e, entre o trabalho e as aulas na faculdade, sempre encontrava um tempinho para rever os amigos, saboreando uma cerveja estupidamente gelada.

O fechamento do A Roda Bar, rememora ele, foi uma dor para os frequentadores.

– Primeiro, a Celesc decidiu cortar a luz do bar, que era para forçar o fechamento da casa. Conversamos com o casal de idosos que era dono do estabelecimento, e os convencemos a continuar lá, mesmo à luz de velas. As bebidas geladas mandávamos alguém comprar em outro lugar e levar para o bar. Até que a situação ficou insustentável. No dia do fechamento, proferimos discursos emocionados de despedida. Cantamos, juntos, a Valsa do Adeus – relembra.

Mas nem tudo é saudade na exposição de Átila Ramos. Ele não esqueceu de retratar, também, alguns dos bares atuais, pois, mesmo sem o romantismo de outrora, continua sendo em torno de uma mesa de bar que os amigos se reúnem. Seja para festejar uma conquista ou chorar um amor perdido.

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Samba e bar, tudo a ver

Tudo começou em função do Carnaval. Átila Ramos pesquisava sobre o tema para desenhar uma história em quadrinhos registrando a festa popular na Ilha desde o século 19 – um projeto que deve estar concluído até o final deste ano. Aí, ele reparou que seria impossível falar de Carnaval sem pelo menos citar os bares de Florianópolis, pois eram neles que os blocos e escolas faziam a tradicional ” concentração” antes dos desfiles.

Em seu acervo, já tinha várias pinturas de bares, algumas datadas das décadas de 1980 e 90. Então, veio a ideia de pintar mais algumas aquarelas, juntar tudo e montar a exposição.

– A Banda do Mexe-Mexe se reunia no Bar do Ori, o Batuqueiros do Limão iniciaram no Bar e Mercearia do Reinaldo, no Saco dos Limões; o Miramar era ponto de encontro de todas as bandas e escolas, antes das apresentações… A história do carnaval ilhéu e dos bares está intimamente ligada – conta o artista.

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Átila Ramos tem dois livros publicados, História do Carnaval da Ilha e Memórias do Saneamento Desterrense. É, também, um eterno defensor da revitalização do Centro Histórico de Florianópolis.

– Muitas vezes, fico imaginando como ficaria aquele cenário da cidade, com o resgate do Miramar, a recuperação do Castelinho (Museu do Saneamento), a restauração da antiga Câmara, a reconstrução do hotel La Porta… Tudo é viável, basta boa vontade – acredita.

Local de celebrar a vida

“O bar, de lugar de perdição acabou se tornando um lugar de comunhão. Bar não é lugar de beber. Lá, a bebida é só desculpa para se estar junto. Um frequentador não é um cliente. Ele tem nome. Aí, muitas coisas interessantes podem acontecer. Muita filosofia e muito amor nasceram em uma mesa de bar. É verdade que os bares já foram pontos de perdição. Eram não onde as pessoas se perdiam, mas onde os que haviam se perdido em outros lugares vazios de alegria tentavam encontrar a alegria perdida.”

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O texto acima são trechos da crônica Sociologia dos bares, publicada por Rubem Alves no livro Cenas da Vida, em 1997. A sua ideia de que o bar é o local democrático de encontro de amigos, encontra respaldo nos estudos do sociólogo Gilberto Luiz Lima Barral, que escreveu tese de mestrado sobre o tema. Segundo ele, os bares e o lazer noturno vêm desenvolvendo uma história no espaço público, como um local de frequentação jovem, principalmente a partir de meados do século 19.

As tabernas, primeiros bares da modernidade, eram espaços para beber, inicialmente frequentadas por adultos, trabalhadores, marginais, prostitutas e artistas. Depois, começam a ser vivenciadas por jovens estudantes, escritores, poetas e intelectuais, iniciando culturas em torno da noite, do fumo, da bebida, e outros imaginários noturnos. Em torno dos bares nasceu uma das primeiras culturas jovens ligadas ao lazer noturno:a boemia.

O bar, na opinião de Barral, que centrou sua tese de mestrado nos bares atuais de Brasília, é um local de celebração, comemoração, consumo, paquera, mas é sobretudo um lugar onde o lúdico se desenvolve. O riso é vivido e representado em torno das mesas, da bebida, do encontro. Também são espaços de forte carga erótica, de encontros, amizades e outros afetos.

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