Imagine a cena: em uma das esquinas mais movimentadas do caótico centro de São Paulo, jovens com cabeleiras black power e inusitadas roupas de cores berrantes colocam um enorme aparelho de som no chão, apertam o play e, sem cerimônia, começam a dançar. Ali mesmo, em pleno espaço público, diante das milhares de pessoas que vêm e vão.

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Isso começou a ocorrer no início de 1983, quando uma nova dança urbana, cheia de movimentos acrobáticos, começou a se alastrar pelo mundo: o breaking – no Brasil, rotulado como break ou breakdance. A iniciativa de tirar a dança dos salões e levá-la para as ruas partiu do dançarino, coreógrafo, músico e educador social Nelson Gonçalves Campos Filho, mais conhecido como Nelson Triunfo (www.nelsontriunfo.com), 59 anos, um dos pais da cultura hip-hop no Brasil.

Essas rodas que ele abria nas ruas paulistanas nos últimos anos de ditadura militar são um bom exemplo de como a dança pode ser utilizada como instrumento de apropriação e ocupação dos espaços públicos. Dessa forma, ela vai além da expressão corporal, seu papel artístico, e passa a obter significado, também, nos âmbitos social e político.

Na época, diversas vezes, Nelson Triunfo e seus companheiros enfrentaram a repressão policial: a roda era desfeita de forma truculenta, socos e pontapés eram distribuídos e, não raro, dançarinos eram levados para longos chás de cadeira nos distritos policiais, sob a acusação de vadiagem ou desacato. Era considerados “rebeldes”, subversivos.

Esses incidentes não amedrontavam nem intimidavam o ousado Nelson Triunfo. Dia após dia ele voltava ao mesmo local e tornava a abrir sua roda de dança. Essa rotina se seguiu por cerca de dois anos, tempo suficiente para descobrir ou formar novos dançarinos e lançar os alicerces do que, logo, eclodiria no desenvolvimento da cultura hip-hop em São Paulo, mais uma vez apropriando-se do espaço público – dessa vez, a estação São Bento do metrô.

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Num período em que artistas tinham de driblar os censores que vetavam quaisquer manifestações interpretadas como subversivas ou contrárias aos padrões de comportamento impostos, a expressão corporal de Nelson Triunfo e seus companheiros era considerada uma afronta e uma ameaça à chamada “ordem pública”. Assim mesmo, eles resistiram e insistiram com as rodas de dança nas ruas.

Demorou e não foi fácil, mas a dança superou preconceitos e venceu a truculência. Nos dias atuais, quando retorna ao mesmo local para dançar, Nelson Triunfo continua sendo abordado por policiais – mas que agora sorriem e querem cumprimentá-lo ou tirar uma foto com ele.

Tecnicamente, a própria liberdade dos movimentos da dança de Nelson Triunfo também exprime essa ideia de afrontar regras e limitações, pois ela mistura influências diversas, que vão dos ritmos nordestinos e do samba ao hip-hop, passando pelos antigos musicais do cinema norte-americano, pelo funk, pelo soul e por diversas vertentes da black music e do street dance. Sua dança não cabe em um rótulo: é verdadeiramente livre.

* Jornalista, escritor e radialista envolvido com comunicação na cultura hip-hop desde 1999, Gilberto Yoshinaga é autor da biografia Nelson Triunfo: Do Sertão ao Hip-Hop (editora Shuriken, 365 páginas – www.nelsontriunfo.com). Lançado em março de 2014, o livro conta a trajetória artística e de vida do dançarino, coreógrafo, músico, ator e educador social Nelson Triunfo, que é considerado um dos pais do hip-hop brasileiro.

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