Os ricos e famosos, importantes e poderosos sempre são lembrados e ouvidos – mas e o resto da humanidade, que sofre com os caprichos da história? E aqueles cujo trabalho é parte dos acontecimentos? Como essas pessoas serão lembradas?

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A resposta, pelo menos na Itália, pode ser encontrada aqui, nessa cidadezinha da Toscana que se tornou o repositório de registro de inúmeras vidas.

Alguns são rabiscados às pressas em pedaços de papel; outros enchem agendas inteiras, de couro, com caligrafia alongada. Há também os que são datilografados na maior organização. Eles estão entre os milhares de diários, cartas, autobiografias e notas cuidadosamente descritivas que lotam as prateleiras do Archivo Diaristico Nazionale, oferecendo um registro fiel das vidas de pessoas comuns e de como elas testemunharam os grandes eventos que moldaram a nação.

Lembrar e destacar as vidas de pessoas comuns que colocaram no papel suas experiências foi o que inspirou Saverio Tutino, um correspondente estrangeiro e cronista dedicado, a começar os arquivos, em 1984, naquela época distante em que milhões de pessoas no mundo todo ainda não postavam todos os seus movimentos e opiniões no Twitter.

Desde então, mais de sete mil livros de memórias foram parar em Pieve Santo Stefano, agora conhecida como a Cidade dos Diários, a cerca de 24 quilômetros a nordeste de Arezzo.

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Alguns chegaram aqui pelas mãos dos próprios autores, que vão desde donas de casa frustradas a assaltantes de banco sem remorso; outros, pelos herdeiros. Há também aqueles que foram encontrados em sótãos e brechós e entregues ali porque suas histórias emocionaram quem as leu. Os mais antigos datam do século XVIII, mas a grande maioria é do século XX.

– Para Tutino, todo mundo era único e, juntos, formávamos a história – explica Loretta Veri, ex-diretora do arquivo e que hoje ajuda a arrecadar fundos para mantê-lo.

– Tutino dizia que éramos privilegiados, que tínhamos sorte de poder ouvir os sussurros dos outros, que as vozes no papel sempre faziam um som delicado.

– O ideal de democracia de Tutino era dar poder às pessoas comuns, dar dignidade às suas vidas, inspirado por conceitos políticos esquerdistas – explica a responsável atual, Natalia Cangi.

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Na verdade, no início foi um prêmio de mil euros (US$ 1.332) e – o mais importante – a promessa de publicação que convenceram tanta gente a confiar suas observações a pessoas totalmente estranhas.

Foi um golpe de mestre.

– É só dizer a palavra “prêmio” que os italianos enlouquecem – afirma o ator e escritor Mario Perrotta, que publicou um livro sobre o arquivo.

– Os italianos respeitam milhares de prêmios e todos têm um efeito devastador.

Qualquer um pode competir pelo prêmio, que é entregue todo ano, em setembro, para o material mais interessante. O trabalho das dezenas de candidatos é revisto por grupos de leitura formados por moradores da cidade e dos vilarejos vizinhos. O vencedor – escolhido entre oito finalistas – é publicado; os outros se tornam parte do arquivo.

É claro que nem todos estão interessados em transformar suas lutas diárias em domínio público e, em muitos casos, as histórias vêm até com instruções. Uma mulher de Foligno insistiu em manter seu diário acessível ao mundo todo, exceto a duas parentas a quem desprezava; outro pediu que seus registros se mantivessem confidenciais até 2072.

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Segundo os arquivistas, quase sempre a transcrição é marcada por desafios como decifrar garranchos ou entender dialetos, muitas vezes usados por pessoas de grau de instrução mais baixo.

Um exemplo é a autobiografia de Vincenzo Rabito, representada na forma de 1.027 páginas datilografadas e que inclui 718,9 mil pontos-e-vírgulas; siciliano, trabalhava no transporte rodoviário e escreveu de 1968 a 1975. Ela cobre décadas e aborda momentos cruciais da história italiana do século XX em um tom vibrante e bem escrito, que reflete a educação universitária de seu autor.

– É uma verdadeira muralha de palavras, aparentemente impenetrável – afirma Loretta, mas tão bem escrita e tão interessante que ganhou o prêmio em 2000 e chegou a ser republicada, tornando-se um best-seller.

– Os diários acabam ganhando vida própria – reflete Natalia, à frente da fundação desde 2010, observando que, ao longo dos anos, o arquivo se tornou uma fonte riquíssima para dramaturgos, cineastas e jornalistas.

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Entretanto, a estrela unânime é Clelia Marchi, uma camponesa semianalfabeta de Mantua que começou a contar a história de sua vida em um lençol matrimonial imaculadamente branco aos 72 anos de idade.

Dois anos depois, em 1986, ela levou a peça a Pieve Santo Stefano, confiante de que sua obra ganharia o respeito que merecia. Ela começa assim: “Meus caros, prestem atenção ao que há nesse lençol, pois é parte da minha vida e a do meu marido”. E contou sua história “ghanca una busia” como diz o dialeto local, “sem uma única mentira”.

O lençol, a que os arquivistas batizaram de “a nossa mortalha”, já inspirou artistas e escritores.

Ou como os 39 pedaços de papel rabiscados em uma prisão romana por Orlando Orlandi Posti, de 18 anos, durante suas últimas seis semanas de vida. Preso em três de fevereiro de 1944 por avisar os amigos sobre uma blitz iminente dos soldados alemães, o rapaz conseguiu registrar seus pensamentos – e principalmente a devoção à namorada – e enviá-los para fora do presídio, em folhas enroladas na gola das camisas que iam para a lavanderia. Acabou se tornando um dos 335 italianos mortos em 24 de março de 1944, nas Cavernas Ardeatine, em represália à morte de 33 policiais alemães.

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Sua história se transformou em livro e peça e é um dos destaques do pequeno museu inaugurado em dezembro passado, na Prefeitura de Pieve Santo Stefano, um dos poucos prédios que ficaram de pé depois que os alemães bombardearam a cidade, em agosto de 1944. Ali também está o lençol de Clelia Marchi.

O arquivo se tornou um centro importante de pesquisa histórica. Para o livro que lançou em 2013, “Fascist Voices: An Intimate History of Mussolini’s Italy”, por exemplo, Christopher Duggan leu cerca de 200 dos 2,5 mil diários do período.

– Em uma época em que as lembranças pessoais são tão negligenciadas, dadas à facilidade e à demanda de comunicação excepcionais do momento presente, a criação de novos centros como esse, dedicados a preservar os registros das ações, sentimentos e pensamentos de gente comum de outros tempos e contextos, é mais do que bem-vinda – escreveu Duggan no prefácio.

A jornalista Luciana Capretti também queria “histórias normais” quando saiu pesquisando material para seu romance, “Tevere”, sobre uma mulher que desapareceu em Roma, em 1975, ainda traumatizada pelos eventos ocorridos na Segunda Guerra Mundial.

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– Descobri explicações sobre como alimentar a família quando não havia comida disponível, mas também histórias de estupros e violência, descritos de maneira muito simples, que usei para criar situações no meu livro e descrever a vida no norte da Itália na época – me disse ela por telefone.

O centenário da Primeira Guerra foi desculpa para mais uma ocasião de promover o arquivo – através de um projeto multimídia criado este ano, em parceria com a editora L’Espresso, para recontar a Primeira Guerra Mundial com uma série de relatos de parte dos 350 diários do arquivo que cobrem o período.

– É uma oportunidade de fazer parte da vida daqueles meninos, da geração de jovens massacrada por um absurdo – conclui Veri.