Os Estados Unidos podem estar a poucos meses de uma profunda mudança na luta do país contra o coronavírus: a primeira vacina efetiva.
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Demonstrar que uma nova vacina é segura e eficaz em menos de um ano é um recorde de velocidade, resultado de muito trabalho dos cientistas e bilhões de dólares de investimento do governo. Desde que um número suficiente de pessoas a tome, a vacina pode retardar uma pandemia que já matou um milhão de pessoas em todo o mundo.
É tentador olhar para a primeira vacina do mesmo modo que o presidente Donald Trump: aquilo que trará de volta a vida como a conhecemos. “Assim que for liberada, vamos tomá-la e derrotar o vírus”, disse ele em uma coletiva de imprensa em setembro. Mas especialistas dizem que devemos nos preparar para um ano instável e frustrante.
As primeiras vacinas podem fornecer apenas proteção moderada, suficientemente baixa para que seja prudente continuar usando máscara. Até meados do ano que vem, pode haver várias delas, sem uma noção clara de como fazer uma escolha. Por causa dessa gama de opções, os fabricantes de uma vacina superior que ainda estão nos estágios iniciais de desenvolvimento podem ter dificuldade em concluir os testes clínicos. E algumas delas talvez sejam abruptamente retiradas do mercado, porque podem acabar não sendo seguras.
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“Quase ninguém percebeu a complexidade, o caos e a confusão que serão realidade em poucos meses”, afirmou o dr. Gregory Poland, diretor do Grupo de Pesquisa de Vacinas da Clínica Mayo.
Parte dessa confusão é inevitável, mas outra parte é o resultado de como os testes de vacinas contra o coronavírus foram projetados: cada empresa faz o próprio teste, comparando seu poder com um placebo. Mas não precisava ser assim.
Na primavera boreal, quando cientistas do governo começaram a discutir como investir na pesquisa de vacinas, alguns queriam testar uma série delas de uma só vez, umas contra as outras – o que é conhecido como protocolo mestre.
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O dr. Anthony S. Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, foi a favor da ideia. Esses megatestes, porém, representam um risco comercial para os fabricantes, porque revelam como uma vacina se sai contra suas concorrentes.
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Em vez disso, o governo se ofereceu para financiar grandes testes se as empresas concordassem com algumas regras básicas comuns e compartilhassem alguns dados. Elas ainda tinham permissão para fazer testes por conta própria.
“É preciso ter a cooperação total das empresas farmacêuticas para se envolver em um protocolo mestre. Isso – não sei qual é a palavra certa – acabou não sendo viável”, declarou Fauci.
O sistema de verificação de vacinas não foi desenvolvido para um contingente tão grande. Normalmente, os cientistas levam vários anos para preparar uma vacina antes de testá-la em pessoas. Os primeiros testes de segurança, conhecidos como fases 1 e 2, podem levar vários anos.
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Se tudo correr bem – e em geral isso não acontece –, pode começar então a fase 3, a última, na qual são comparadas milhares de pessoas que recebem uma vacina com milhares que recebem um placebo. Podem ser necessários mais três anos para obter esses resultados. Só então – uma década ou mais depois do início da pesquisa – um fabricante de vacina construirá uma fábrica para produzi-la.
Quando o coronavírus começou a se espalhar no início deste ano, pesquisadores de vacinas em todo o mundo sabiam que não poderíamos esperar tanto tempo. A Organização Mundial da Saúde (OMS) organizou um grupo de especialistas para iniciar o que ficou conhecido como o Teste de Vacinas Solidárias. Várias vacinas seriam dadas aleatoriamente a um grande grupo de voluntários, enquanto um grupo menor receberia um placebo.
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Todas elas seriam testadas contra o mesmo grupo placebo, e todos os voluntários estariam vivendo nas mesmas circunstâncias. “Você tem uma comparação totalmente válida, não apenas de cada uma dessas vacinas contra o placebo, mas uma contra a outra”, disse Thomas Fleming, bioestatístico da Universidade de Washington e membro do grupo Teste de Vacinas Solidárias.
Levou nove meses para sair do papel, mas esse teste começará ainda em outubro com um pequeno estudo na América Latina.
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Na mesma época em que a OMS elaborava planos para seu megateste, autoridades do governo dos EUA discutiam como poderiam investir da melhor maneira nos testes de vacinas e acelerá-los. Alguns pesquisadores, incluindo Fauci, defenderam um projeto muito parecido com o da OMS.
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No entanto, Moncef Slaoui, conselheiro-chefe da Operation Warp Speed (OWS), o esforço multiagências para acelerar o desenvolvimento de vacinas e tratamentos para o coronavírus, divulgou em um comunicado que esse tipo de teste teria sido impraticável: “Se a OWS tivesse testado todas as vacinas sob um protocolo mestre, a operação teria de esperar meses para começar e recrutar 200 mil voluntários ao mesmo tempo.”
No fim, o governo optou pelo que descreveu como uma “abordagem harmonizada”. Isso permitiria que os fabricantes executassem os próprios testes, mas apenas se usassem protocolos que seguissem certas diretrizes e permitissem que o Instituto Nacional de Saúde (NIH, na sigla em inglês) testasse todos os seus voluntários da mesma forma. Em troca de seguir essas regras, as empresas poderiam entrar na grande rede de sites de testes clínicos do NIH e receber apoio financeiro. Por meio desse programa, o governo prometeu US$ 10 bilhões aos fabricantes de vacinas até o momento.
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Até agora, AstraZeneca, Johnson & Johnson e Moderna iniciaram testes na rede. Novavax e Sanofi devem iniciar estudos próprios de fase 3 nos próximos meses. Mas a Pfizer, uma das líderes, não aderiu, optando por realizar testes completamente por conta própria.
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Se os resultados da Pfizer forem bem, muitos especialistas esperam que a empresa peça à FDA (agência norte-americana responsável pelo controle de alimentos e remédios) uma autorização emergencial para sua vacina, potencialmente para apenas um grupo de pessoas de alto risco. A empresa pode, então, rapidamente solicitar uma licença, tornando-a amplamente disponível.
A autorização de uma vacina dependerá da quantidade de proteção proporcionada na fase 3 – o que os cientistas chamam de eficácia. Em junho, a FDA estabeleceu como meta 50 por cento de eficácia contra o coronavírus.
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A eficácia em um teste, contudo, pode não necessariamente corresponder à eficácia no mundo real. Isso porque, como qualquer estudo estatístico, os testes da fase 3 têm margens de erro. Uma vacina que atenda às diretrizes da FDA pode ser mais de 50 por cento eficaz, ou pode ser menos. Pode muito bem ser apenas 35 por cento eficaz.
Quer essa primeira autorização de vacina vá para a Pfizer ou para outra empresa, ela pode dificultar os testes de suas concorrentes. Alguns voluntários, sem saber se receberam uma vacina experimental ou um placebo, podem desistir de um teste em andamento para obter a vacina autorizada, retardando a pesquisa. John Shiver, chefe global de pesquisa e desenvolvimento de vacinas da Sanofi, concordou que esse cenário pode ser considerado no teste da empresa.
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As coisas poderiam ser ainda piores para as vacinas em estágios iniciais de testes. Esses produtos podem precisar provar que são melhores do que o recém-aprovado. A diferença entre duas vacinas será menor do que entre uma vacina e um placebo. Como resultado, esses testes podem ter de ser maiores e durar mais. O alto custo pode ser superior ao que muitas das pequenas startups que trabalham em vacinas inovadoras podem suportar.
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“Isso basicamente impede o desenvolvimento de melhores vacinas. Dado o enorme investimento dos contribuintes, o público deve exigir mais”, disse o dr. Naor Bar-Zeev, especialista em vacinas da Escola de Medicina da Universidade Johns Hopkins.
As diretrizes da FDA levantam a possibilidade de testar vacinas futuras contra uma autorizada, mas não dizem exatamente se a agência mudaria os requisitos dos testes. “Não dá para especular sobre o que pode ou não acontecer no futuro”, afirmou um porta-voz da agência.
Slaoui, da Operation Warp Speed, observou em um comunicado que, uma vez que uma vacina é autorizada, testes que ainda não tinham começado ou que estavam na fase de recrutamento de voluntários estariam restritos a grupos que não foram aprovados para receber a vacina autorizada. Como é provável que a primeira onda de vacinas vá para os profissionais de saúde ou outros grupos de alto risco, essa política pode significar que esses grupos não teriam permissão para fazer parte de novos testes clínicos.
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Na primavera ou no verão boreais do ano que vem, pode muito bem haver várias vacinas contra o coronavírus para os consumidores americanos escolherem. Essa escolha será difícil, porém. Uma que mostrou 50 por cento de eficácia em um teste, por exemplo, pode realmente ser mais protetora do que uma que garantiu 60 por cento de eficácia em um estudo diferente.
“Posso imaginar as pessoas tentando se informar sobre pequenas diferenças que poderiam ser apenas um acaso estatístico”, disse Natalie Dean, bioestatística da Universidade da Flórida.
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Em um telefonema com repórteres na sexta-feira, Paul Mango, funcionário do Departamento de Saúde e Serviços Humanos, informou que a Operation Warp Speed estava no caminho certo para ter até 700 milhões de doses de várias vacinas até março ou abril – o suficiente, segundo ele, para “todos os americanos que desejam obtê-la”. Quanto a quem receberia qual vacina, ele afirmou que isso caberia ao comitê consultivo de vacinas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças: “Eles vão nos orientar sobre qual delas é mais apropriada para qual segmento de americanos.”
Mas o comitê consultivo ainda não tem um plano para isso, e a dra. Grace Lee, professora de Pediatria da Escola de Medicina da Universidade Stanford e membro do comitê, avisou que desenvolvê-lo vai demandar muito trabalho duro. “É difícil de fazer, dada toda a incerteza com as vacinas contra a Covid”, disse ela.
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Mesmo vacinas moderadamente eficazes serão uma grande ajuda na redução dos casos – mas apenas se um número suficiente de pessoas tomá-las, e apenas se estas perceberem que ainda podem adoecer. “Precisaremos continuar usando máscara com algumas dessas vacinas”, comentou Poland, da Clínica Mayo.
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A abordagem harmonizada do NIH para todos os testes de fase 3 que obtiverem o financiamento da Operation Warp Speed provavelmente trará alguns insights científicos. É possível que, por exemplo, em todos os testes, alguma assinatura molecular no sangue de uma pessoa vacinada mostre que ela está protegida. Testes futuros podem simplesmente procurar por essas assinaturas, em vez de esperar que as pessoas adoeçam.
No entanto, não há garantia de que surgirá uma assinatura tão clara. E mais incertezas surgirão à medida que os reguladores continuarem a procurar efeitos colaterais raros, mas perigosos, em vacinas autorizadas.
“Haverá acontecimentos aleatórios. É muito provável que algumas vacinas sejam recolhidas”, disse Bar-Zeev. Por exemplo, um grupo de idosos poderia ter um derrame logo depois da vacinação, o que levantaria a hipótese de a vacina ser a culpada.
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A única maneira de gerenciar este ano caótico, de acordo com Poland, é que os cientistas falem honestamente sobre como as vacinas são testadas e que a população saiba o que está por vir. “As pessoas preferem que haja um aviso antecipado”, observou ele.