A lâmina não corta. Suaviza cicatrizes. Também não faz sangrar. Ao contrário, estanca. A lâmina não afasta. Abrevia distâncias.

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É o que faz Waldir Behr, 77 anos, com seu aparelho de barbear nas mãos. Com generosidade, ele provoca sorrisos, suscita palavras, levanta a autoestima de quem, emudecido pela dor, pode não achar mais graça na vida. Nesses que, muitas vezes esquecidos sobre uma cama, olham para a porta sempre aberta à espera de uma visita que não chega.

O cenário são os quartos do Hospital Regional e do Instituto de Cardiologia, em São José, na Grande Florianópolis. Também os leitos das Unidades de Terapia Intensiva (UTI). Duas vezes por semana, o aposentado veste o jaleco e assume como um dos 85 voluntários que atuam no complexo hospitalar. A presença de Waldir- “com dois ‘v’ de vida” – , como brincam os amigos, é o de também levar um pouco de conforto aos doentes.

Waldir nunca foi barbeiro. Aposentou-se em uma empresa de carros no Bairro Estreito, parte continental de Florianópolis, onde foi consultor técnico. Recebia os carros com defeito e dava o diagnóstico. Cabia ao mecânico fazer o conserto. Hoje, experimenta o contrário. O médico quem diz o que o paciente tem. Ele, tenta reparar rostos angustiados.

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Waldir tornou-se barbeiro movido pelo desejo de ajudar as pessoas. No começo, para acompanhar a mulher, que era voluntária, e com quem viveu por quase 50 anos. Com a repentina morte dela, em 2010, uma exímia feitora de bolos, decidiu que devia continuar adoçando vidas. Em uma bolsa de mão ele leva os ingredientes: pincel, cumbuca para misturar o creme, os aparelhos adquiridos pela Associação Amigos do Hospital Regional, a Amhor. Carrega ainda uma tesoura e um pente.

– A gente faz barba, cabelo e bigode – brinca.

A aproximação com os pacientes é feita de forma serena. Waldir puxa assuntos amenos. Doença não é um bom tema. Melhor falar do lugar onde a pessoa mora, se está frio, se o lanche foi servido. Dependendo do quadro em que estão, algumas vezes são os acompanhantes os abordados. Aprendeu uma coisa: esposas e filhas são boas em convencer os pacientes a se deixar barbear com o argumento de que “fica mais bonito”, conta o viúvo, pai de três filhos e avô de cinco netos. Quando estão bem, cabe sempre aos internos responder a pergunta:

– Quer que eu faça sua barba?

É difícil ouvir um não. Se isso acontece, é porque o paciente não se sente bem. Mas por essas idiossincrasias da vida, Waldir também testemunha o inverso: casos em que, à beira da morte, o paciente pede para ser barbeado. Tão peculiar quanto, observa, é perceber pessoas que se sentem relegadas ao esquecimento. Do mal maior: adoecidos de solidão.

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– Muitas vezes, a visita do barbeiro é a única da semana – diz.

Waldir vivenciou muita coisa nesses 10 anos em que circula pelos corredores do hospital. Fez novas amizades e reencontrou amigos que o tempo tinha afastado. Dias atrás, no quarto número 111, barbeava o agricultor Arnoldo Lindolfo Haeiderscheidt, 46 anos, morador de Angelina, quando se emocionou. Recuperando-se de uma cirurgia, o paciente aceitou fazer a barba e pediu para que lhe cortasse o cabelo.

– A doença enfeia a gente – dizia o interno, com nova aparência, esboçando um sorriso no espelho de mão.

Uma pincelada na memória e Waldir se lembra de coisas que escuta de pacientes. Para uns, sua presença dissipa preocupações. Para outros, diminui o passar das horas.

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Por coisas assim é que Waldir dedica duas tardes da semana para barbear pacientes. O trabalho voluntário (mais informações no www.aamhor.org.br ) exige dele mais compreensão do que habilidade. Tem vezes em que passa um bom tempo em pé, ao lado da cama, conversando. Nem tira o pincel da bolsa. Em outras, entende que o silêncio se faz necessário. Barbeia, se despede e vai embora.

Fio de barba, afeto em fio. Por isso as mãos de Waldir não cortam, fazem sangrar ou afastam. Afetivamente suavizam.