Esta segunda-feira, 1° de fevereiro, é dia de recomeço para Victor, 17 anos, e Amauri, 53 anos. Depois de uma semana, filho e pai voltam a trabalhar. O garoto como auxiliar de almoxarifado numa marmoraria; Amauri, como vigilante terceirizado num prédio público. No domingo, 24, os dois tomaram uma rasteira da vida. A laje da casa onde Victor morava com a mãe, Ana Cristina Machado Lopes, 49 anos, e a irmã, Letícia Lopes Machado, 21 anos, no Bairro Saco Grande, veio abaixo. As duas morreram no local.
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– Sobrou a Nina, esta gatinha que minha mãe batizou com este nome – conta Victor Lopes Machado, que foi morar com o pai numa quitinete alugada nos altos da Rua João Carvalho, no Bairro Agronômica, em Florianópolis.
Nina foi resgatada por Victor, na quinta-feira, quatro dias depois do desabamento. O bichinho miava de sede e de fome no meio dos escombros.
– Estava bastante suja de terra, mas protegida por um pedaço de banco quebrado. Teve sorte – explicou o rapaz.
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“Eu não ouvi nada. Só vi a poeira levantando”
O casal estava separado havia um ano. Ana Cristina fazia faxinas, frequentava a Assembleia de Deus com os filhos e mantinha uma relação discreta na vizinhança. Apesar de separado da esposa, Amauri mantinha-se próximo. O inesperado mudou a vida do filho e do pai com a mesma rapidez que Victor descreve a tragédia no começo da tarde daquele domingo:
– Eu não ouvi nada. Só vi a poeira levantando.
Victor havia saído 20 minutos antes para ajudar um colega, já que a casa dele, 10 metros adiante, havia enchido com a água da chuva. Lembra de ter deixado a irmã dormindo no quarto e a mãe fazendo o almoço. Acredita que, se Letícia não tivesse se levantado, talvez pudesse ter sobrevivido.
– Eu corri. Mas não consegui mais ver a mãe nem minha irmã.
Victor recorda que a jovem Letícia tinha um sonho: ir para a Coreia. Fã do K-Pop, música coreana que virou febre e que mistura coreografias, ela aprendeu por conta própria a falar o idioma e planejava viajar com um primo para o país da banda BTS. A moça era organizada, terminou o Ensino Médio, trabalhava numa rede de fast food e chegou a comentar com o pai que pretendia fazer a faculdade de veterinária. Feliz em ouvir o relato da filha, Amauri traçou um plano – com o dinheiro da venda do carro ele ajudaria a pagar as mensalidades.
– Infelizmente, usei para pagar os enterros.
Victor já se vê seguindo o roteiro de muitos jovens empobrecidos. Até o começo do 2020, ele frequentava o 9° ano e tinha planos de finalizar o Ensino Médio. Com a chegada da pandemia, as aulas foram suspensas e ele decidiu trabalhar. Conseguiu um emprego perto de casa e agora pretende frequentar aulas à noite.
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Pai e filha: o último lanche, um presente e um coração como despedida
Na tarde de quinta-feira, 21, Letícia telefonou e convidou o pai para fazer um lanche no shopping. Victor também iria, mas desistiu por causa da chuva. Amauri recorda que naquele encontro sentiu algo incomum entre ele e a filha:
– Havia uma coisa diferente entre nós, algo que eu não consigo explicar, mas que senti muito fortemente. A gente estava mais afetuoso um com o outro, andamos de braços dados vendo as vitrines, entramos numa loja e ela escolheu um short de presente. Quando nos despedimos, a sensação era de uma coisa estranha. A última mensagem dela para mim já foi em casa, informando que tinha chegado bem e eu dizendo que ela ficasse com Deus. Ela enviou um coraçãozinho.
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“Na hora do desespero, um consola o outro”
Amauri diz que possui registro de cartório de compra do terreno onde ficava a casa. Mas reconhece que a estrutura era antiga e que faltavam colunas de sustentação para dar segurança ao imóvel. Com a chuva intensa e queda de um muro, a laje desabou e atingiu Ana Cristina e Letícia que estavam na cozinha.
Pai e filho sabem que possuem muitos desafios pela frente. Aos poucos vão encontrando forças para enfrentá-los. Um deles, o de retornar aos escombros para retirar documentos, fotografias, roupas, objetos, alimentos, foi vencido. Salvaram o que foi possível – além da gatinha Nina, reencontraram a cachorra Tedi, a qual estava amarrada embaixo de uma proteção.
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A dureza da vida parece aplicar mais um apuro a eles: o de ter que respirar a atmosfera do desabamento. Amauri tem um terreno ao lado da antiga moradia e pensa em construir uma casa. Com isso, se livraria de pagar o aluguel, que hoje é de R$ 800,00.
– Eu converso com meu filho: a gente nunca vai esquecer o que ocorreu, a forma como foi, independente de onde estivermos. Tem hora que vem o desespero, eu grito, eu choro, e ele me consola. Em outro momento é ele não consegue dormir, fica mexendo no celular, meio parado, e eu ofereço meu abraço. Na hora do desespero, um consola o outro. E assim a gente segue a vida.