Autor de mais de cinco mil retratos falados, o policial civil Cassius Clay, 48 anos, leva na memória 29 anos de histórias de algozes narradas a ele por vítimas, a grande maioria transtornada pela violência e atormentada pelo medo.

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Com lápis, borracha e papel, e conversas sinceras ao lado de homens e mulheres, adultos, idosos e crianças, o desenhista ajudou a polícia a botar as mãos em um incontável número de casos policiais ao longo de quase três décadas em Santa Catarina.

Cassius, que tem o nome do famoso ex-pugilista norte-americano porque o pai era apaixonado por boxe, se aposentou em maio, pois também tinha o restante de tempo de serviço necessário como auxiliar de escritório antes de ingressar na Polícia Civil.

O trabalho policial passou a ser lembrança. Nos últimos anos, já vinha sendo pouco requisitado diante da transferência da missão para papiloscopistas do Instituto Geral de Perícias (IGP), que desenvolvem os retratos falados agora no computador e com o auxílio de um software.

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Cinco Servidores do IGP foram treinados, em Florianópolis (2), Lages, Sombrio e Joinville – o próximo será da Região Oeste.

Nascido em Capinzal, no Meio-Oeste, casado e pai de uma filha, o morador de Florianópolis, hoje em dia dedica a maior parte do tempo à pintura de quadros.

Dedicação agora é pintar quadros em Florianópolis.

Nesta entrevista, confira momentos marcantes da vida em busca da feição de bandidos:

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Início

Foi uma série de coincidências. Tentaria fazer faculdade, ou de arquitetura ou engenharia, em Curitiba ou Florianópolis. Surgiu concurso público da Polícia Civil, resolvi realizar e acabei passando. Na academia, como fazia no colégio, passei a desenhar professores, colegas, caricaturas de brincadeira, aquilo chegou nas mãos de delegados, e pediram para fazer retrato falado. Me direcionaram para trabalhar com outro escrivão que fazia com acetatos (outro material). O escrivão Alécio tinha uma caixa com acetatos e desenhos pré-feitos, ele fazia uma montagem sobrepondo um ao outro, formato de rosto e tal. Achei muito cru, sem sombras e profundidade, eram só traços mesmo. A partir daí, cinco meses depois criei um método próprio sempre com a base na descrição das vítimas. Comecei a usar um acervo fotográfico com pessoas presas onde a vítima em cada foto escolheria uma característica parecida, ou um formato de nariz, de boca, olhos, juntando todas em várias fotos eu ia montando o retrato falado. Fiz de 200 a 300 por ano. Policiais botavam na rede, pegavam, comparavam a foto com o desenho. Eles mandavam as dúvidas para mim, ‘o que tu achas, é o cara ou não?’. Não existe como prova, é só um auxílio. Até porque a gente não tem certeza até que ponto a vítima está descrevendo fielmente a realidade.

Vítimas

Era feita uma entrevista, sozinho, às vezes nas delegacias, hospitais, residências. A gente faz de tudo para deixar a vítima muito tranquila e a entrevista é importante para deixar ela solta, fazê-la relembrar. Porque geralmente o trauma é muito grande, em qualquer tipo de crime. Quanto mais tu conseguir a confiança, mais ela consegue descrever detalhes do fato em si.

Sexo feminino

A mulher já repara se o sapato está combinando com o cinto, se o homem está bem vestido, unhas sujas. São detalhistas, reparam. O homem num assalto é o primeiro a ser rendido e o primeiro que eles botam com a cara no chão, batem, colocam de barriga para baixo e amarram e, às vezes, deixam a mulher e as crianças olhando e aí elas conseguem ver. Criança é a melhor que tem. Elas não têm a relação do fato em si, o que aconteceu e a realidade. Elas se abrem muito fácil.

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Delitos

Existem vários tipos de crimes. Os sexuais são os que mais deram resultado no retrato falado, é que geralmente os autores são pessoas da comunidade. Os mais difíceis de resolver são assaltos bem planejados, que na maioria das vezes são criminosos que vêm de outras cidades, Estados, não têm permanência fixa no local. Encapuzados e de capacete eu geralmente não fazia, com boné sim. Já fiz com capacete quando a pessoa só deixa na cabeça, acima, não fica com ele todo. Os de crimes sexuais são os mais difíceis. Já atendi crianças com deficiências. É complicado, meninas de 10, 11 anos, geralmente choca todo mundo. Até contra uma mulher adulta é uma coisa que a gente não consegue digerir bem.

Confiança

Esclarecia para ela (a vítima) que não precisava ter vergonha de contar as coisas, que eu estava ali para ajudar e evitar que aquilo ocorresse com outras pessoas, outras mulheres e crianças. Tudo que ela falasse ali iria ficar tranquilo, ninguém ficaria sabendo. Tentava ganhar a confiança dela e graças a Deus eu sempre consegui.

Detalhes

Cada pessoa tem alguma peculiaridade. Pernas arqueadas, cacoetes, alguma mania e tudo isso é importante. Você entrevistando um suspeito e o cara começa a ter aquele cacoete, a mania, é sempre uma informação a mais para auxiliar na investigação. Correntes, anéis, relógios, se o cara é destro, canhoto. Tem vítimas impressionantes, que sabiam de coisas que nem precisava perguntar, corte de cabelo, dedo quebrado. Geralmente a vítima evita olhar o criminoso porque ele ameaça quando ela fica encarando. É meio raro a pessoa ter bastante convicção e descrever bem.

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Na sala da Deic, em 2009.

Prisões

É muito gratificante quando você recebe um e-mail de um delegado, do policial que estava investigando o caso comunicando que foi pego o acusado com o auxílio do retrato falado. Depois, comparando e vendo, você conseguir fazer uma descrição do nada, apenas com uma pessoa te falando, é muito gratificante

Na cela

Aconteceu o caso de um roubo a banco do antigo Besc dentro do Hospital Regional (São José). Foi feito retrato falado e essa pessoa tinha a característica de ser baiano, forte e ainda tinha um dos olhos um pouco menor do que o outro. Após oito meses esse cidadão foi detido pela Deic no Kobrasol passando cheques roubados. Quando eu o vi na cela, eu falei: ‘mas eu fiz um desenho igualzinho a esse cara, não é possível’. Aí fui nos meus arquivos, peguei, mostrei aos colegas: ‘é o cara mesmo’. Chamamos os caixas do Besc e ele foi reconhecido na hora.

Software

A Polícia Civil usa agora o trabalho da perícia técnica, que é feito através de um software doado pela Polícia Federal. Que eu saiba tem uns dois peritos que fazem. Cada um tem a sua opinião, eu tenho a minha. O problema do software é que dá uma coisa muito precisa, que pode induzir muito ao erro também. Se a vítima não descreveu corretamente, tu vai ter outra pessoa e a tua visão está te enganando.

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Retratos falados de criminosos hoje são feitos com ajuda do computador pelo IGP.

Catarinenses

A miscigenação é muito grande. Tem gente de toda a parte do Brasil aqui, inclusive pessoal de fora se fazendo de turistas e na verdade são criminosos. Por isso, o crime é muito difícil de resolver aqui. O cara vem, passa 15 dias, aluga uma casa, faz um monte de assaltos e vai embora.

Crime forjado

O que explico sempre é, olha, não é que o que está aqui seja a pessoa. Fiz um desenho, vai saber se a vítima descreveu errado. Tem pessoas que forjaram sequestro, se envolveram com drogas e para dar satisfação à família disseram que foram vítimas de sequestro relâmpago. Tem vítimas que forjam ali um retrato falado à toa. Teve um universitário que disse ter sido raptado, sequestrado em Tubarão, e veio parar na Lagoa (da Conceição). Aí na entrevista, perguntei: ‘quantos caras?’, ‘dois’, ‘quem dirigia, o moreno ou branco?’, ‘ah, era o moreno’. Aí tu dava um tempo e começava uma sabatina de pergunta: ‘quem dirigia, era o branco ou o moreno?’, ‘não, era o branco’. Aí o cara começa a se perder na conversa e tu vê que ele estava mentindo. É igual ao interrogatório que o delegado faz, a pessoa vai se perdendo. Na verdade o guri tinha enchido a cabeça de droga, vendeu notebook, aparelho de som, perdeu o dinheiro todo e depois disse que tinha sido raptado. Depois se comprovou, até com outros meios, que ele estava mentindo.

Dicas

Tem que colocar em mente que assalto é sob pressão psicológica, violência, é muito rápido, um minuto, dois. A dica é a mesma, manter-se calmo e se tiver oportunidade observar a pessoa, com calma, sem reação. Muita gente não quer olhar para o bandido também porque acha que ele não vai gostar, vai reagir. Mas se puder olhar uma coisa, pode elucidar o caso.

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Última imagem

Estava de licença. O delegado de Tubarão (delegacia da Mulher) me ligou pedindo se eu podia fazer um retrato falado urgente (caso de estupro). Foi num sábado. Peguei o carro e fui pra lá e logo depois pegaram o cara. O delegado depois ainda botou na rede falando do auxílio, mesmo de licença, num sábado.

Como era a produção dos retratos

1- O desenhista sentava ao lado da vítima

2- Mostrava álbuns com 38 mil fotos de criminosos presos

3- Na entrevista, indagava as características do autor do crime como tipo de boca, olhos, nariz, cabelo, comparando com as do álbum e também o local, o horário, carro usado para auxiliar na investigação policial.

4- Então, desenhava o rosto na frente da vítima até ela achar a semelhança ideal

5- Além das características físicas, colhia dados como se usava anéis, correntes, brincos, capuz, bonés, se tinha tatuagens, cicatrizes, o sotaque, o tipo da arma que portava (oxidada ou não), se revólver ou faca, se era violento ou não, a fala calma ou nervosa, altura média, o que pretendia roubar, estilo de roupas, cores das roupas, gírias e até aspecto se tomava bebida alcoólica ou não.

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