Ainda comentava-se a pesquisa que apontou 69 células nazistas em Santa Catarina, quando o então secretário especial de Cultura do governo Jair Bolsonaro, Roberto Alvim, publicou um vídeo com frases de um discurso de Joseph Goebbels, ministro de Adolf Hitler. Já seria o suficiente para ver a repercussão no Estado, até que no último domingo, dia 19, um homem de 55 anos foi preso em São José, na Grande Florianópolis, flagrado com uma camiseta com suástica pendurada na janela do apartamento. Há relação entre os casos?

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O advogado Marco Antônio André, presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB/SC, acredita que sim. Para ele, posições de autoridades como Alvim estimulam comportamentos supremacistas, antissemitas.

— As ações dessas lideranças fazem com que as pessoas se sintam à vontade para ter esse tipo de comportamento criminoso.

O advogado chama a atenção para o argumento de quem defende que se trata de liberdade de expressão:

— Não podemos confundir liberdade de expressão com agressão a outra pessoa. Uma coisa é dizer que não gosto de algo, outra é usar uma camiseta alusiva a um crime de guerra, símbolo de uma prática criminosa contra a humanidade.

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Viegas Fernandes da Costa, professor no Instituto Federal de Santa Catarina (IFSC), em Florianópolis, concorda. Ele defende que o nazismo sempre esteve presente em Santa Catarina, mas por ser proibido estava escondido.

— Agora temos políticos e autoridades alinhadas com essas ideias de extrema-direita, como demonstrou Roberto Alvim, que só caiu por ter feito a citação do ministro da propaganda nazista. Se tivesse dito a mesma coisa com outras palavras, permaneceria no governo Bolsonaro – sustenta.

Vinícius Augusto Pontes de Carvalho é formado em História e faz mestrado em História do Tempo Presente na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Para ele, há um diferencial no debate atual a partir do discurso em vídeo de Roberto Alvim:

— O uso de símbolos nazistas, como a foto do ministro nazista, afeta diretamente a comunidade judaica. É positivo que isso ocorra e digno de ser enfrentado de frente, mas os ideais extremistas e discursos de violência já estavam permeando a nossa sociedade contra negros, indígenas, homossexuais, mulheres, moradores de comunidades periféricas, sindicalistas.

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Muitas vezes, diz ele, a violência se revela travestida de “opinião pessoal”, “liberdade de expressão”, “superação do politicamente correto”. Quase sempre, por pessoas do nosso círculo, como familiares, amigos, colegas de bar, de futebol, de trabalho:

— A gente percebia e estranhava, mas não demos a importância proporcional à gravidade que tal problema denotava. Porém, agora, aparentemente, estão “saindo do armário” e defendendo a propagação de notícias falsas, programas de humor que humilham minorias, situações que antes seriam motivo de motivo de vergonha e rechaço.

O QUE DIZ A LEI

A Lei 7.716/89 trata de apologia ao nazismo e prevê que é crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular, símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”. A pena prevista é de reclusão de dois a cinco anos e multa.

Justiça criminal legitima os atos com absolvição advogada Daniela Felix

A lei é clara. Apologia ao nazismo é crime, prevê multa e cadeia. Apesar de Santa Catarina ser um dos estados com maior número de simpatizantes e da imprensa divulgar casos com certa frequência, o assunto parece distante dos tribunais. Para Daniela Felix, articuladora em Santa Catarina da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares, isso ocorre porque o Poder Judiciário catarinense ignora os processos históricos totalitários. Além de não encarar o racismo, a xenofobia e intolerâncias com a devida seriedade.

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– Quando casos que envolvem estes temas chegam às suas análises, acabam por compreendê-lo como condutas de menor potencial ofensivo, ao invés de buscarem outros fundamentos legais para romper este ciclo de violência – real e simbólica – diz a advogada.

Desta forma, explica, o sistema de justiça criminal também legitima e naturaliza estas condutas, quando não, autoriza. Daniela usa como exemplo o caso da absolvição de um grupo neonazista no Vale do Itajaí, que flagrantemente se mobiliza em torno da bandeira genocida.

É uma lástima um Estado com tamanha diversidade ter nazistas professora Marlene de Fáveri

Um risco enorme para a sociedade catarinense. Assim a professora Marlene de Fáveri, do Departamento de História e Centro de Ciências Humanas e da Educação da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), avalia a existência de células nazistas no Estado. Fato agravado, conforme a educadora, por estarmos historicamente em um lugar conservador onde fascismos sempre estiveram presentes em parte da população – quer nas apologias ao nazi-fascismo, quer nas expressões de xenofobia, machismo, homofobia, racismo.

Ao todo, o Brasil tem 334 células nazistas em atividade, sendo 69 em Santa Catarina. O Estado aparece como em segundo lugar na pesquisa feita por Adriana Abreu Magalhães Dias, antropóloga da Unicamp. Dos três grupos no Brasil que se identificam como seções locais da Ku Klux Klan, dois estão em Blumenau. As células são formadas por três a 40 pessoas.

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– Um Estado com características tão conservadoras como o nosso corre o risco de ver transferidas de pais para filhos as ideologias nazistas. É uma lástima que, num Estado com a multiplicidade de culturas que abriga, mantenha-se o nível de intolerâncias com os não brancos, não heteros, não ricos, e somado a isso, com um índice elevadíssimo de feminicídios.

Para a professora da Udesc, enfrentar essa realidade depende da construção de currículos escolares com conteúdos humanistas e que respeitem a diversidade cultural; que expressem temáticas como direitos humanos, cidadania, democracia, respeito as diferenças étnicas e raciais. Além de conteúdos de gênero como categoria de análise e sexualidades.

– Não é mais permissível que pessoas cultivem a limpeza da raça através de melhorias genética. A história tem mostrado os efeitos nocivos e genocidas destas ideologias.

O que diz o Tribunal de Justiça de SC?

A reportagem procurou o Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), via assessoria de comunicação, e fez três questionamentos relacionados ao tema. Perguntado se existe alguma dificuldade para identificar e julgar esse tipo de crime, o órgão informou que “não existe qualquer dificuldade em julgar esse tipo de crime, cuja investigação não é de responsabilidade do Poder Judiciário”.

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Questionado sobre possível omissão, o tribunal apontou que: “De modo algum. O Poder Judiciário catarinense não se omite. Sempre julga os casos que lhes são apresentados, bem como condena ou absolve sempre de acordo com as provas dos autos”.

O TJ-SC destaca-se historicamente por ações de vanguarda e com decisões pioneiras na justiça brasileira. Indagado se o órgão poderia estar sofrendo influência da formação de magistrados e alinhamento com ideais de extrema direita, a assessoria do tribunal negou qualquer possibilidade e apontou que “não se identificou até aqui qualquer tipo alinhamento dos magistrados com ideologias de extrema direita ou esquerda. A tradição dos magistrados catarinenses é de julgar com base na Constituição Federal, nas leis e de acordo com sua consciência”.

CASOS EM SANTA CATARINA

Abril de 2014

Cartazes que enalteciam Adolf Hitler foram colados em um poste próximo à Igreja Matriz de Itajaí. A 1ª Vara Criminal de Itajaí absolveu cinco anos depois dois homens acusados de colar os cartazes. Dois jovens, na época com 24 e 28 anos, foram presos em flagrante no dia 13 de maio, mas foram soltos em audiência de custódia no dia seguinte. O juiz Augusto Cesar Allet Aguiar concluiu que “não há demonstração alguma de que os réus estivessem incitando o nazismo”. O Ministério Público de Santa Catarina (MPSC) aceitou o argumento do juiz e informou que não iria recorrer “porque as provas que foram produzidas na fase do inquérito policial não foram confirmadas na fase processual”.

Dezembro de 2014

Uma fotografia registrada em Pomerode ganhou repercussão internacional por mostrar uma suástica no fundo de uma piscina. O proprietário da casa não chegou a ser alvo de inquérito policial. Na época, o delegado disse não ver ilegalidades no caso. O Ministério Público também não ofereceu denúncia.

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Dezembro de 2017

A Operação Hateless (menos ódio) fez parte do inquérito que investigou ataques racistas a um advogado de Blumenau e colagem de cartazes racistas com mensagens supremacistas na cidade, em outubro daquele ano. Quatro homens e uma mulher foram alvo de prisão coercitiva. Foi apreendido material: soco inglês, camisetas, desenhos. Ninguém foi punido até o momento.

Janeiro de 2020

Um homem de 55 anos foi preso em flagrante na noite do último domingo, no bairro Forquilhinha, em São José, por ter pendurado uma camiseta com uma suástica na janela do apartamento onde mora. No dia seguinte, após audiência de custódia, ele foi liberado. Ao delegado Deonir Trindade, o homem disse ter se declarado nazista, um “lobo solitário”. Na residência dele, foram recolhidos livros com apologia ao nazismo, dois celulares, um notebook, câmeras fotográficas, uma agenda e mais uma camiseta com uma suástica, entre outros itens. A Justiça entendeu que, por ter emprego e residência fixa, ele poderia responder ao caso em liberdade. Porém, foram determinadas medidas cautelares, como a proibição de deixar a Comarca. No dia 25 de janeiro, ele foi indiciado por crime com pena de até cinco anos.