Na TV, um belo dia, questionaram Aretha Franklin:
– Como a senhora define seu canto? – perguntou o homem engravatado atrás do microfone.
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– Com a alma?
– (silêncio) …
– É, alma negra – ela completou com um sorriso do tamanho da tela do televisor.
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Aretha completa 70 anos neste domingo (como se as maiores cantoras do mundo tivessem desenhada na carteira de identidade uma idade cronológica igual a de mortais como eu e e você, como se elas precisassem seguir a tirania de uma longa sequência de velas acesas em cima da cobertura de chocolate da torta de aniversário). Ela cantou tudo o que podia e o que desejava nos anos 1960 e 1970. Deu o máximo, tirou tudo de si, e o auge da sua vida artística está concentrado nestas duas décadas. Ainda vai usufruir dos nossos ouvidos no Terceiro Milênio, por certo (talvez com canções mais previsíveis, pode dizer um pessimista), cantar com a face enrugada de um tempo de repetições, releituras e revivals (podem afirmar os que estão cansados da volta dos que já foram). Mas Aretha não precisa se preocupar durante o Parabéns a Você: ela tem seu estoque pessoal de hits – tente agora Spirit of Dark (1970), uma obra-prima quase esquecida, ou outros discos maravilhosos – ela sempre estará disposta a nos abastecer num iTunes cinco estrelas.
Nada será, hoje, nesta data querida, por certo, como foi nos seus 14 anos, quando cantava na igreja do reverendo CL Franklin, o pai, sempre com o evangelho embaixo do braço gordo. (Imagina se o pai fosse vivo, pense no que ele sentiria se tivesse ouvido a filha cantar na posse do presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em 2009, na Casa Branca. Pensaria, claro, que tudo é uma obra do Senhor.) Nem quando ela foi descoberta por um caça-talentos, quando viu filas de gente de gravadora na porta da sua casa, em Detroit, mas não ouviu empresários brindarem com champanhe a sua contratação. Eles queriam ser donos da voz.
Logo foi chamada de Lady Soul, apelido que ela ainda ama. Em seguida, enriqueceu os que acreditaram e apostaram nela, entrou nas paradas de sucesso, acelerou a performance entre 1967 e 1968, estudou, questionou, pesquisou, usou a intuição. Colocou 20 sucessos, como Think ou Say A Little Prayer, no top 10 da parada norte-americana em um intervalo de 18 perfeitos meses. Seu repertório envolvia Beatles, Simon and Garfunkel, blues, pop, jazz e rock. Ela misturou tudo, uma década de sons, um século de boas fontes. Não há o que reclamar, só ouvir, repetir e aplaudir seus mais de 20 discos, escolher alguns, guardar no andar definitivo das músicas que nunca fazem mal aos ouvidos em um planeta sem noção musical.
Muitos a notaram como uma das estrelas negras num período em que era quase crime ser negro nos EUA, se portar como tal, brilhar. Sua voz chegou quase como um aviso de um novo tempo, outras ideias, mudanças definitivas. Foi como se uma cantora gospel saísse da igreja dos negros e entrasse direito na sala da classe média, via rádio ou LP, com a devida licença e com a voz de um novo evangelho pop.
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Aretha Franklin encosta nos 70 anos não mais como uma cantora, mas como uma instituição. Ella Fitzgerald, Nina Simone, Sarah Vaughan, Billie Holiday, Mahalia Jackson, Dinah Washington e até uma intrometida Janis Joplin, hoje só vozes, cantariam ao lado dela, se ainda fosse possível, na festa. Estariam ao nosso lado, todas, caso Aretha Franklin seja a nossa principal acompanhante musical neste primeiro final de semana de outono. Uma, claro, qualquer uma, recomendaria a outra.