Cidade de Nossa Infância:

Não queria cair em lugar comum como a paisagem, o comércio ou muito menos as imagens de cartão postal. Gostaria de pintar a alma de minha cidade natal alguma coisa muito intima, valores que somente as pessoas da terra conhecem, verdades muitas vezes simples, porém eternas em nossas saudades.

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Foi ai que tentei registrar a memória e as lembranças de um tempo bom, minha infância e adolescência e de toda a nossa geração que hoje próxima aos 70 anos, e que talvez tenha sido a última a ter vivido tão cheia de valores próprios. Nossas filhas não sabem fazer as “tortas de banana” como o de nossas avós. Os meninos não verão mais o seriado do Zorro na sessão na sessão das duas no Cine Palácio e, nos intervalos não mais trocarão gibis. As bicicletas sumiram e hoje não vejo mais as cortinas de rendas nas janelas com seus vasinhos de flores. nas tardes de domingo, também se calou no rádio a disputa entre os dois times concorrentes.

Porém muito forte em mim, ainda escuto as cigarras nos jardins das casas da rua do centro anunciando a chegada do verão, sinto o gosto ácido do araçá e o doce das compotas de carambola, o sabor exótico do refresco de gengibre, e o cheiro do pão de milho recém assado no forno à lenha. Sinto ainda, o cheiro forte da cera de abelha nos bancos da igreja, da brilhantina nos cabelos nos bailes de sábado, misturado ao “leite de rosas” de minhas primas.

Meu amigo Alexandre com sete anos, já pintou suas emoções.

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Eu “O Rico”, pelos amigos que tenho.

Nas férias de inverno me faziam tomar óleo de rícino, mas me compensavam com torta de chocolate, mingau de aveia com canela e gemada com vinho quente. Para engordar me deram todos os dias, durante anos, uma colher de óleo de fígado de bacalhau, continuo magro, mas tenho todos estes sons, gostos e cheiros tão nítidos, que de olhos fechados percorro agilmente este labirinto de lembranças.

Foi este o tema que escolhi e tentei pintar. A cada golpe de pincelada foi como um passaporte numa viagem de volta ao tempo. Penso até, que enquanto pintava, cheguei a escutar vozes de certos professores do colégio, a gritaria da gurizada nas brigas depois das aulas. Reconheci algumas fábricas pelo apito ou até mesmo a banda do batalhão nas retretas na praça principal. No centro do quadro, uma grande e maternal árvore, universo maior de cada criança, meu “pé de goiabeira”. Trepado como um gato, vivia grandes aventuras. Lá de cima olhava o mundo como se fosse só meu e de total domínio. Cada galho era um conhecido caminho para uma nova direção na minha “rosa dos ventos”.

Eu, na infância, com sete anos.

Aquela árvore foi meu barco e tenho certeza, na época, naveguei além dos horizontes. No alto, como uma grande coroa, pintei ciclistas, os que vi, os que eu fui. Não quis retratar ninguém, ao mesmo quis pintar todas as pessoas que conheci, como um grande e bonito desfile. Personagens reais; meu pai, tios, dono da loja da esquina, pipoqueiro, professoras e operário.

Talvez sejam eles, todos os adultos que quando criança os conheci e os admirei, girando, girando como uma uma grande dança silenciosa. Penso que quando morrer também irei fazer parte deste carrossel.

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Eu, na 3ª infância, com 70 anos.

Na base, ao pé da árvore coloquei certos objetos, muito significativos para mim, que guardo até hoje. Brinquedos, álbum de figurinhas, avião revestido em papel de seda, primeiro autorretrato, bola de couro com cadarço e uma mala, que desde pequeno já tinha pronta e cheia do meu incontrolável desejo de rodar o mundo.

Ao fundo, lá longe, a vista da cidade em voo de pássaro, naquela minha cidade que tinha a medida humana, cabia numa mão ou dentro de um olhar ao mesmo tempo tão grande. No lado esquerdo do quadro, sem nenhuma vaidade, me pintei, magro, cabelo lambido na testa, calças curtas e camisa branca do uniforme da escola pública. No segundo plano, o trapiche do mercado, lugar mágico, onde todos de todas as escolas matavam as aulas para nadar.

Eu, “o sonhador”, mas de olho aberto.

Mais a frente, as mesas com guarda-sol de metal da sorveteria com as cadeiras de vime verde-cinza e sobre o pequeno prato de baquelite o inesquecível “especial”, receita simples cheia de segredos que garoto algum jamais irá provar. Nós fomos os últimos e ali tivemos as nossas primeiras descobertas do amor, deixamos nos tampos das mesas, gravados a canivete, iniciais dentro de gordos e apaixonados corações.

No lado direito do quadro, outra mesa importante: toalha xadrez, cheiro de cerveja no ar, um monumento histórico na nossa nostalgia. Conheci muitos na minha vida de amante de bons bares, e este foi o primeiro, sentei em todas as mesas, joguei todos os dados nos jogos de dominó, perdi muito, ganhei mais. Tudo isso para seduzir as lidas debutantes dos bailes de gala. Elas de anáguas largas e vestidos brancos, joias discretas, muito laquê e Bombril nos penteados.

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Nós os “garotões” de altos topetes, pente de chifre no bolso, sapatos bem polidos, rodopiando a valsa como um Fred Astaire, lá longe nos anos cinquenta. Cube-libre, confetes, de rosto colado dançando com a fina flor de nossa sociedade.

– Muitos de vocês, casaram ali mesmo e para sempre, nas noites de sábado nas festas do clube social.

Quantos carnavais, tantos Réveillons… Já éramos adolescentes quando inaugurou o novo cinema, quem esquece? Poltronas de veludo, em cinemascope “Sete noivas para sete irmãos”, depois “Chuvas de Ranchepur”. A mocinha era linda, o mocinho charmoso, usava sapato de duas cores e o final sempre feliz.

O tempo passou, mudaram-se os hábitos e costumes e os nossos jovens, tenho certeza que encontrarão novos encantos em novos lugares que amanhã serão novas saudades, pois a emoção de “ter vivido” jamais mudará. Tudo que falei foi apenas a minha “emoção” e como pintor, tenho a obrigação e o privilégio de deixar registrado em óleo sobre tela o “Vilarejo de toda nossa Infância”.

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