O anúncio de que um bebê infectado pelo vírus HIV foi curado por médicos norte-americanos gerou um misto de esperança e receio entre especialistas.
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O motivo da esperança é a perspectiva palpável de reverter muitos dos 330 mil casos anuais de recém-nascidos contaminados pela mãe no útero ou no parto, reduzindo de forma drástica a quantidade de crianças que vivem com o HIV no mundo. O receio é de que a cura divulgada no domingo não se confirme ou não seja reproduzível.
O bebê em questão nasceu em 2010, na zona rural do Mississippi (EUA). A mãe não fez pré-natal e desconhecia sua condição de soropositiva. Na hora do parto, a equipe médica descobriu que ela podia ter o vírus e encaminhou o bebê para o Centro Médico da Universidade do Mississipi.
Lá, antes mesmo de ter a confirmação de que a criança havia sido infectada, a médica Hannah Gay adotou um procedimento inusitado: com apenas 30 horas de vida, começou a tratar o bebê com um coquetel de três drogas antirretrovirais. Quando os testes confirmaram a presença do HIV, ela deu continuidade à medicação. Hoje com dois anos e meio de idade e há um ano sem medicação, a criança não tem mais o vírus.
O caso ganhou relevo porque, até hoje, só existia um exemplo documentado de paciente soropositivo em que o HIV foi erradicado – um homem com leucemia que recebeu um transplante de medula de um doador resistente ao vírus.
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Antes de admitir que há um segundo caso de cura, os médicos querem provas de que o bebê efetivamente estava infectado e de que o vírus não voltará a se manifestar. Os pesquisadores que anunciaram a cura ainda não publicaram seus achados em um publicação científica.
– Por enquanto é preciso ter muita cautela. Não podemos pegar o caso de uma única criança e dizer que isso vai revolucionar o tratamento ou extrapolar a situação para pacientes adultos – avalia Luciano Goldani, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.
Goldani acredita que, no caso de realmente ter havido a eliminação do vírus, isso provavelmente ocorreu porque a infecção era muito recente. Nessa circunstância, o HIV ainda não teria tido tempo para chegar aos chamados reservatórios, células nas quais ele não pode ser alcançado por nenhuma medicação – e de onde está sempre a postos para ressurgir. Como estaria apenas no sangue, as drogas conseguiram derrotá-lo.
– Na minha opinião, se houvesse algum reservatório, o vírus não teria sido eliminado. Se houve a eliminação, abre-se uma perspectiva de cura para as crianças nas primeiras horas após a infecção. Milhares poderiam ser salvas ou poupadas de tomar o coquetel pelo resto da vida, principalmente na África – afirma.
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A principal responsável pelo estudo, Deborah Persaud, do Centro de Crianças do Hospital Universitário Johns Hopkins, anunciou que o procedimento será testado com outros bebês. Caso a técnica se revele uma forma viável de cura, as autoridades de saúde poderão recomendar a realização de testes rápidos pouco depois do nascimento e o início de um tratamento intensivo a partir das primeiras horas de vida.
Nesta segunda-feira, a Organização Mundial da Saúde (OMS) celebrou a descoberta norte-americana, que “permite esperar que uma cura da Aids seja possível para as crianças”. Mas também ressaltou que ainda são necessários mais estudos. Essa cautela foi a atitude generalizada.
– Se esse resultado for confirmado, vai ser realmente uma coisa incrível. Mas ainda é cedo para tirar qualquer conclusão. Só o tempo é que vai dizer como essa criança vai reagir, se ela vai ficar indefinidamente sem manifestação laboratorial e clínica do HIV – observou Caio Rosenthal, do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, de São Paulo.
Perguntas e respostas sobre o caso:
O que torna única a cura do bebê infectado pelo vírus HIV nos EUA?
Quando uma mulher soropositiva dá à luz, o bebê é tratado durante quatro a seis semanas com uma droga antirretroviral. O objetivo é prevenir a infecção pelo vírus, um risco que a criança corre pelo contato com o sangue da mãe na hora do parto. No caso do bebê norte-americano, não teria acontecido uma prevenção, mas uma cura. Ele já estava infectado – e o vírus foi eliminado pela medicação, o que nunca havia ocorrido antes.
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Por que o tratamento conseguiu eliminar o vírus na criança?
Poucas horas após o nascimento, o bebê começou a receber um coquetel de três drogas, como outros soropositivos. A medicação persistiu por mais de um ano. O vírus foi eliminado, o que não ocorreu com nenhum outro paciente medicado. A hipótese mais aceita é que o vírus foi eliminado porque, apesar de estar no sangue, ainda não se havia instalado nos chamados reservatórios – células onde consegue se “esconder”, sem ser ameaçado pela medicação.
O que a cura do bebê americano significa para o combate à aids?
Se for confirmada a cura, o caso mostra que existe um período entre a infecção e a instalação do HIV nos chamados reservatórios (linfócitos ou células do sistema nervoso, por exemplo) em que ainda é possível expulsar o vírus do organismo, caso se inicie o tratamento nesse intervalo. Essa janela, no entanto, é muito breve. O bebê começou a ser medicado 30 horas depois de nascer.
Outras pessoas poderão ser curadas da mesma maneira?
A partir de agora, os pesquisadores terão de testar o método em outras crianças infectadas, para descobrir se é uma forma eficaz de eliminar o HIV. A princípio, os beneficiados seriam recém-nascidos, pois seria necessário aproveitar a janela entre a infecção pelo vírus e a chegada dele aos chamados reservatórios. No caso dos bebês, isso é viável porque se sabe o momento em que ocorre a maior parte das infecções: o parto.
Adultos não poderiam ser beneficiados pela descoberta?
Se houver um impacto para adultos, será pequeno. Em geral, eles descobrem o vírus meses ou anos depois da infecção, quando o HIV já está instalado em células inacessíveis a remédios. Em situações específicas, no entanto, poderia haver benefício. Dependeria de começar o tratamento poucas horas após a infecção. Um mulher vítima de violência sexual, por exemplo, poderia fazer um teste rápido de detecção do HIV e, em caso de resultado positivo, iniciar de imediato o tratamento com o coquetel. Se o vírus ainda não houver alcançado os reservatórios, ela poderia ser curada.
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Que impacto a técnica poderia ter na saúde, em termos mundiais?
Se ficar comprovado que tratar recém-nascidos dá resultado, milhares de infecções seriam evitadas. Nos países ricos e mesmo no Brasil, são poucos os casos de bebês que nascem infectados, porque medidas de prevenção durante a gravidez e reduzem significativamente os riscos. No entanto, em países pobres, a profilaxia não está disseminada. Segundo as Nações Unidos, existem 3 milhões de crianças soropositivas. Apenas 2011, segundo as estimativas, 330 mil bebês foram infectados pela mãe.
A descoberta pode mudar os protocolos médicos no que diz respeito a evitar a transmissão de mãe para filho?
Quando se sabe que a mãe é soropositiva, o indicado é medicá-la durante a gestação e, quando o bebê nasce, usar uma droga antirretroviral por alguma semanas, em caráter preventivo. Isso não deve mudar. No entanto, pode haver no futuro a prescrição de testes rápidos logo após o nascimento e, em caso de resultado positivo, o início do tratamento com o coquetel – especialmente no caso de gestantes que não sabiam ser soropositivas ou que não fizeram a profilaxia durante a gestação.