A professora e antropóloga Joziléia Daniza Kaingang, de Joinville, é uma das convidadas do 10º Circuito de Cinema Infantil, projeto catarinense que é hoje um dos mais importantes do Brasil na promoção do audiovisual para crianças e como recurso educativo. O evento ocorre até o dia 19 de junho com programação virtual, gratuita e acessível (em LIBRAS).
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Da etnia Kaingang, Joziléia é professora, antropóloga, especialista em antropologia e política das mulheres indígenas. Faz parte da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga) e é uma das fundadoras da Articulação Brasileira dos Indígenas Antropologes (Abia) e do Comitê de Assuntos Indígenas da ABA. Ela participa nesta terça (15) da conversa Povos indígenas: conhecer, respeitar e se encantar. Além dela, participam do debate o escritor e líder indígena André Baniwa e a doutora em antropologia e cineasta Rita da Silva.
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Nesta entrevista, Joziléia fala sobre educação, as muitas infâncias do Brasil e a importância de descolonizar o olhar sobre a pluralidade étnica do país.
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Como você percebe a representação dos povos indígenas no audiovisual brasileiro?
Hoje temos vários indígenas no audiovisual, diretores, realizadores do audiovisual. É muito importante termos esses profissionais para trazer novos olhares ao cinema, incluindo nossos povos, nossas histórias e nossas memórias.
Por que o termo “infâncias”, em vez de “infância”, no singular, vem sendo adotado?
Existem diversos modos de ser criança em diferentes contextos. Nós, indígenas, assim como pesquisadores que trabalham com povos indígenas e crianças indígenas, percebemos que temos uma diversidade de “brincar-experimentar-trabalhar-descobrir-aprender” em lugares parecidos, nas aldeias indígenas, que estão nas mesmas regiões, nos mesmos biomas.
Muitas vezes, o pátio da aldeia, o rio em que brincamos, pescamos, nos banhamos são parecidos, mas nossas memórias ancestrais, nossos saberes ontológicos, nossas tradições, nossas organizações sociais são distintas e, por isso, produzem singularidade. A antropóloga Clarice Cohn diz que “as crianças são diversas para cada contexto etnográfico.” Reconhecer que somos uma diversidade, que hoje somos em dados oficiais de 305 povos indígenas, com línguas e tradições distintas, é muito importante no fortalecimento dos povos indígenas do Brasil.
Qual é a importância de se pensar as muitas infâncias do país em questão de políticas públicas ou mesmo de educação?
Nós vivemos em um país com dimensões continentais, e os contextos socioespaciais são diversos. As crianças indígenas participam dessa diversidade e cada região ou bioma terá suas próprias necessidades. Obviamente as crianças indígenas têm suas especificidades, linguísticas, culturais e alimentares, que são distintas das crianças de contexto urbano, por exemplo. Assim, é fundamental que tenhamos escolas diferenciadas que atendam essas necessidades.
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Uma merenda escolar que considere a importância de oferecer alimentos que sejam conhecidos e culturalmente adequados para cada povo indígena; professores indígenas bilíngues, que deem conta de acolher as crianças na escola, considerando a língua materna de cada grupo. E que a escola possa ser uma agenciada pelos seus usuários como um elemento parte da realidade – e não como um elemento estranho, como ela foi no passado, usada como ferramenta de opressão à nossa língua e nossa cultura. As políticas públicas devem ser específicas para os povos indígenas, adequadamente estruturadas para atender as múltiplas infâncias das crianças indígenas. Não como um privilégio, e sim como um reconhecimento à diversidade cultural e étnica do nosso país.
Nesse sentido, se discute muito a questão da revisão histórica e do que é ensinado nas escolas sobre a história do Brasil, por exemplo. Por que é importante conhecer e reconhecer a história dos povos indígenas, e de que forma você acha que isso pode impactar os adultos do futuro?
Eu tenho refletido sobre como devemos recontar a nossa história de maneira objetiva e que alcance grande parte da população brasileira. Minha sugestão é que comecemos por reconhecer que esse território, que era de milhares de outras nações ameríndias, foi invadido, que os corpos dos indígenas foram escravizados para a formação do Brasil. É preciso contar que a formação da sociedade brasileira foi concebida através da violência contra as mulheres indígenas, e os brasileiros são frutos da miscigenação de vários povos.
Também devemos contar que ainda há muitos povos indígenas que resistiram. Somos contemporâneos ao todo, vivemos aqui e agora. Com muitas barreiras, racismo, violências que ainda continuam. Mas estamos também nas universidades, usamos as tecnologias, e por meio de algumas podemos, de forma didática e interativa, recontar a nossa história. E trazer tantas outras ainda não contadas: o cinema, o audiovisual é uma delas, uma ferramenta de possibilidades de recontar a nossa história e estrear tantas outras.
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Onde você nasceu e por que escolheu a carreira acadêmica?
Sou Kaingang nascida no Rio Grande do Sul; nasci nas mãos da parteira Kaingang Joana Caetano, que era parteira, remedieira, que tinha o dom de pegar crianças. Recebi todo cuidado de banhos de erva e chás para fortalecer meu organismo. Sou graduada em Geografia pela UnoChapecó (Universidade Comunitária da região de Chapecó), fiz especialização em Educação para Jovens e Adultos na UFRGS, e mestrado e doutorado no Programa de Antropologia Social na UFSC, onde estou doutoranda.
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A escolha da antropologia foi feita pela minha família, porque era necessário ter antropólogo indígena para trabalhar nas nossas lutas, então segui este caminho. A formação acadêmica e o fato de termos profissionais e pesquisadores indígenas causam estranhamento em muitas pessoas. Nós fomos chamados pelos nossos mais velhos, pelas nossas lideranças, para nos especializar e poder assessorar os nossos povos, visibilizar as nossas demandas, defender os nossos direitos. Sou muito feliz em ser indígena e poder contribuir na defesa do meu povo e de outros povos indígenas.
Como se dá a relação entre os saberes de cada povo ou etnia e o conhecimento tradicional da escola?
A escola foi um agente do Estado que chegou aos territórios indígenas com o objetivo de promover o assimilacionismo dos povos indígenas, apagando nossas línguas, desprezando toda nossa memória de saberes ancestrais milenares. Mas nossas lideranças, os professores indígenas que foram formados para ensinar com o bilinguismo a língua portuguesa, perceberam que poderiam se apropriar da escola e torná-la nossa, e foi assim que aconteceu. Aquela ferramenta se tornou parte da nossa comunidade, e percebemos que através dela poderíamos fortalecer nossas tradições, nossa língua. Nós temos a educação indígena, que está voltada à formação da pessoa, à construção do sujeito, ao aprendizado de ser indígena, com nossas tradições. Já a educação escolar indígena é voltada à formação escolar, ao saber científico não-indígena e indígena também.
Qual o desafio das escolas e educadores de Santa Catarina diante da urgência de “descolonizar nosso olhar”? Estamos avançando?
Sou otimista sempre. Acredito que este diálogo que estamos tendo agora já é um avanço. Nas escolas ainda há muito a ser feito, mas trazer autores indígenas, pesquisadores e lideranças indígenas para diálogos contribui para descolonizar o ambiente escolar. Trazer as nossas narrativas por meio do audiovisual, músicas e livros promove a aproximação com o outro. Quando conhecemos o outro, tendemos a respeitá-lo. A educação escolar tem se voltado ao rompimento com a história falsa que foi contada durante séculos. Trazendo as vozes e pensamentos, as histórias e memórias dos nossos povos. Isso favorece a descolonização do olhar sobre nós indígenas.
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*entrevista por Carol Macário
Circuito de Cinema Infantil
De 14 a 19 de junho
100% on-line e gratuito
Transmissão ao vivo pelo YouTube
Toda a programação tem tradução em LIBRAS