Apóstolo é uma palavra que não flexiona gênero. Substantivo masculino, derivado do grego, significa enviado. Matizada no quadro da Última Ceia, de Da Vinci, perpetua os 12 discípulos ao redor de Cristo. Quinta-Feira Santa é dia da tela descer das paredes para que a cena reacenda o simbolismo. Um ritual dos cristãos repete parte desse mosaico, o momento em que Jesus lava os pés dos homens de confiança. Neste ano, a pedido do Papa Francisco, as rubricas que permitiam a participação apenas de homens foram alteradas. O Missal Romano deixou de fazer referência aos ¿homens escolhidos¿ para falar nos ¿escolhidos entre o povo de Deus¿. Em Florianópolis, a ex-moradora de rua Tatiane Renata de Melo, que já percorreu a pé oito Estados, é uma das mulheres que participará do rito na Paróquia da Trindade
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Tatiane Renata de Melo, 27 anos, foi uma das escolhidas para ter os pés lavados. A cerimônia será hoje às 19h30min, na igreja da Paróquia da Santíssima Trindade, no bairro Trindade, em Florianópolis. Provável que seus pés tenham andado mais do que o de todos os outros 11 escolhidos juntos. Possível que a vida tenha forjado nela um pouco das características de cada um dos 12 apóstolos. Nascida em Franco da Rocha, interior de São Paulo, ela viveu como moradora de rua em oito Estados brasileiros. Um caminho tortuoso que se iniciou aos 12 anos. Assim que deu à luz o primeiro filho, nascido de um estupro. É mais da metade do tempo de vida na condição de vulnerabilidade. Ora como moradora da cracolândia, em São Paulo; ora como andarilha nas rodovias.
O lugar mais distante que os pés pisaram foi Belém do Pará, no Norte do país. Morou também na Paraíba, na Bahia, em Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Paulo. Andava sempre a pé. Não pedia carona para não dar chance a uma nova violência sexual. Mas nunca sozinha, pois na rua as pessoas de juntam para se proteger.
Forte como Simão Pedro, sincera como André
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Atualmente vive em Florianópolis, na Fazenda da Esperança, comunidade nos altos do Pantanal. Divide espaço com outras jovens que tentam deixar as drogas. Tatiane nunca bebeu, não gosta de maconha e menos de cocaína. O esforço dela é para deixar o crack. Teve na pedra a mais lancinante das companhias. Agora, busca em Simão Pedro, o apóstolo-rocha, a fortaleza que precisa.Tatiane foi mãe ainda criança. Na primeira vez que engravidou tinha só 11 anos. Apesar de os familiares e os médicos sugerirem o aborto, preferiu ter o filho. Mas teve a sinceridade do apóstolo André, reconhecendo que o bebê seria melhor criado pela avó.
Com o coração de João e a desconfiança de Tomé
Carrega também um pouco do apóstolo João. São tantas dores, mas sem sentir-se mártir pelos sofrimentos: apesar das circunstâncias, por amor ao filho passaria tudo de novo.Hoje embala o segundo filho, uma menina de cinco meses. O pai da criança está no interior de São Paulo, onde passa por tratamento em uma clínica. Não é a primeira vez que ele tem recaídas. Quando esse é o assunto, Tatiane deixa revelar seu lado Tomé, com certa desconfiança sobre o futuro do casal. Mas sem deixar de estabelecer prioridades: concluir os nove meses longe da droga, sair da fazenda, arranjar um trabalho e alugar uma casa para criar a filha. Até mesmo sozinha.
Tiago lhe inspira a justiça e Mateus, a astúcia
Tem também um pouco da ambição, no bom sentido, comparada com aquela que caracterizou o apóstolo Tiago, o Maior: quer cursar Direito para defender as pessoas das injustiças sociais. Sabe dos seus limites. Mas os encara como desafios. Mesmo não tendo os estudos e bom preparo de Mateus, porém, disposta a semear esperança entre os mais humildes que encontrar pelo caminho. Como só estudou até o 7o ano, pretende concluir os estudos, fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e fixar os olhos na profissão.
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Aliás, sonho que mantém desde a infância. Tempos em que falava em três opções: ser agente do FBI, tornar-se aeromoça ou advogada. A primeira opção, acredita, incentivada pelo que via em casa, onde o pai pertencia à Rota, e a mãe, também policial, integrante do grupamento tático da polícia de São Paulo.
Falando em ação policial, Tatiane acredita que o período de maior violência tenha vivenciado nos tempos da cracolândia paulista. Nada, em lugar nenhum em que viveu, se compara ao que presenciou. Fosse pela ação dos traficantes, os quais com um soco quebravam todos os dentes dos usuários de drogas, especialmente das mulheres, a quem obrigavam a se prostituir. Outras vezes pela chegada dos policiais que, assim como seus pais, pareciam treinados para humilhar.
Com a honestidade de Bartolomeu e a timidez de Filipe
Tenha sido por índole ou por qualquer outro motivo. Verdade é que mesmo em condições adversas, Tatiane conseguiu manter alguns princípios mesmo na vivência de rua. Com uma honestidade de Bartolomeu: mesmo com fome, mas sem nunca roubar. Situação nem sempre tranquila, pois os apelos são muitos. Às vezes, tomada pela timidez de Filipe conseguia dizer não frente ao que era proposto.
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Hoje, quando Tatiane sai às ruas para vender os produtos fabricados na padaria da fazenda e encontra mulheres na condição de rua, recorda do quanto precisou ser forte. Acredita que rua é sempre rua. Mas as mulheres são mais discriminadas, enquanto os homens têm mais possibilidades de emprego.
Tão precoce como Tiago, o Menor, e um pouco do temor de Judas Tadeu
Por sorte existem leis nas ruas. Muitas vezes, a mais jovem entre o grupo de moradores precisava ser ¿adotada¿ pelas mães e pais de rua, remontando a precocidade do apóstolo Tiago, o Menor. E com muitos outros sentimentos. Inclusive a saudade de casa. Às vezes temerosa dos riscos, como Judas Tadeu, o qual mais tarde se tornou um dos santos mais populares da igreja e padroeiro das causas perdidas e desesperadas.
Com os cuidados de Simão e sem as traições de Judas
Há dois anos, Tatiane reencontrou o pai, já bastante doente. Tempo necessário para que o homem crescido e criado sob violências, tivesse a oportunidade de pedir perdão pelos exageros cometidos. A filha não o perdoou e tem convicção de que isso tenha ajudado com que a morte tenha sido serena. Mostrou-se cuidadosa, como Simão. E, diferente de Judas Iscariotes, não deixou abalar a fé em Deus. Por isso, os pés que tanto andaram, que se esfacelaram nas rodovias e sangraram nas ruas foram convidados a dignamente serem lavados.
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