O Centro de Laguna abriga um prédio branco com pelo menos 19 janelas verdes. Ao lado de uma porta, que tem o mesmo tom esverdeado, uma placa informa que o local é dedicado a uma ilustre catarinense nascida há 200 anos. A jovem trocou o nome Ana por Anita e o sobrenome Ribeiro por Garibaldi. Mulher do século XIX, ela viveu na prática coisas que legalmente as mulheres brasileiras só tiveram direito séculos mais tarde, como o divórcio. Lembrada como guerreira, ela é hoje um dos ícones de empoderamento e força feminina.
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Ao lado do marido Giuseppe Garibaldi, Anita lutou na Revolução Farroupilha e pela Unificação da Itália. Não foi apenas esposa de um guerrilheiro, mas uma combatente.
— Ela participava ativamente, só que não foram dadas notícias nas ordens do dia. Nos documentos oficiais não aparecia o nome dela — conta Adilcio Cadorin, autor de “Anita Garibaldi: guerreira da liberdade” (2003).
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Muito da história da catarinense é reconstituída pelas memórias do marido. Sua vida antes de Garibaldi tem poucos registros oficiais. Um exemplo é que sua certidão de nascimento só foi emitida em 2016 em um cartório de Laguna.
— Construir uma Anita Garibaldi sem o Garibaldi não faz sentido por conta dos vínculos que ambos tinham. […] Tudo que a gente conhece da Anita Garibaldi, a gente conhece pela versão do Garibaldi — diz o jornalista Paulo Markun. Em 1999, ele lançou a obra “Anita Garibaldi: uma heroína brasileira”.
Apesar de dois séculos separarem sua trajetória da vida de hoje, há simbolismos e representações que tentam manter Anita viva. Em Santa Catarina, duas cidades levam seu nome: Anita Garibaldi e Anitápolis. Escolas municipais, estaduais e particulares pelo Brasil também a homenageiam em suas nomenclaturas. Garibaldi também nomeia bairros, ruas e até uma hamburgueria. Há ainda uma dezena de estátuas e placas espalhadas pelo mundo.
Até mesmo uma rosa leva seu nome. Como parte das comemorações do bicentenário, a flor foi plantada pelo Instituto Anita Garibaldi em seis cidades catarinenses por onde Anita passou: Laguna, Tubarão, Imbituba, Garopaba, Curitibanos, Anita Garibaldi e Lages.
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O relâmpago
Relâmpagos são descargas elétricas geradas por nuvens de tempestades. Duram poucos segundos, mas encantam com sua luminosidade. Para a historiadora Heloísa Pires, Anita tem a força e a intensidade do fenômeno. A vida curta também é um paralelo possível a fazer entre a jovem e os raios.
Ela casou aos 14, conheceu Garibaldi aos 18, foi mãe aos 19. Com 20, casou-se pela segunda vez. Teve mais três filhos e enterrou uma das crianças aos 24. Morou no Uruguai e foi para Europa aos 28 anos. Mesma idade em que engravidou e morreu.
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Heloísa, que pesquisou sobre Anita para basear o livro “Anita Garibaldi: a estrela da tempestade” (2013), fala que é complexo definir “bandeira identitárias” para a catarinense.
— Existem alguns personagens na história que tem tanta documentação que você consegue fazer o enredo da vida dele. No caso dela, os relatos são muito poucos. Isso facilitou muito associar a figura da Anita a várias tendências — comenta.
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Ela defende que há características documentadas de Anita que causam identificação da jovem do século XIX com as mulheres da atualidade.
— Hoje eu diria que ela é uma mulher muito sistemática nos seus sentidos, que não desiste, que enfrenta o confronto, que não separa a mãe da combatente […]. Que é um pouco a cara da mulher atual. Todas nós somos um pouco Anita — completa.
O jornalista Paulo Markun diz que não há como definir as causas que Anita defenderia se estivesse conosco nos dias de hoje. Ele cita que questões defendidas por ela, como a igualdade, ainda não foram totalmente alcançadas.
— Ela era uma mulher do tempo dela. Não dá para saber o que ela faria hoje, se ela seria feminista. Eu não acho que esse tipo de transferência de coisas na história faz sentido. O que eu poderia dizer é ao contrário. Muitas causas pelas quais ela lutou continuam não tendo sido conquistadas — pontua.
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Uma transgressora
O divórcio no Brasil só foi legalizado em 1977. Desde lá, a lei sofreu alterações até chegar ao texto em vigor atualmente. O fim de um casamento pode ser solicitado tanto pelo homem, quanto pela mulher. Na época da Anita, essa não era uma possibilidade.
Na avaliação da historiadora e professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), Marlene de Fáveri, Anita transgrediu os costumes da época, pois mesmo casada legalmente, engatou um romance com Garibaldi.
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— Isso a faz uma transgressora dos costumes daquele momento. O modelo ideal era aquele em que a mulher se casava e passava do poder do pai para o do marido dentro da ideia de patriarcado — comenta a professora.
A vida das mulheres na época de Anita, define a professora, foi um momento histórico em que casamento era “missão” e a maternidade “obrigação”.
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— Imagina quanto juízo de valor fizeram dessa mulher no contexto da sua vivência. E nem por isso ela deixou de alçar o seu voo e se transformar numa personagem importante na história catarinense e na história das mulheres catarinenses — afirma Marlene.
Anita de hoje
Se estivesse viva hoje, Anita certamente trocaria o vestido pelas calças ao cavalgar. O cabelo poderia ser mais curto, adotando um estilo mais prático. Heloisa Prieto, autora de “Anita Garibaldi – A estrela da tempestade” (2013), diz que ela também não abria mão da feminilidade. Mas ela destaca que mais que a aparência ou as adaptações a vida atual, Anita já é uma personagem contemporânea.
— A mulher contemporânea conversa muito com essa figura de empoderamento, de desafio, que ocupa os lugares […]. Ela é uma figura que ajudou a construir ao longo dos séculos esse lugar que estamos hoje — coloca Heloisa.
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A paixão pelos temas que defendeu em vida também é motivo de destaque. Para Laine Milan, diretora da série “Pequenos Grandes Talentos” (2019), Anita foi uma mulher que derrubou barreiras. O seriado de Laine, exibido na NSC TV, teve um episódio dedicado a catarinense.
— Ela era apaixonada pelas crenças dela e isso é muito bacana porque é isso que define uma pessoa idealista. E o fundamental na Anita é que ela foi uma pessoa muito corajosa — afirma Laine.
Raquel Stüpp, atriz que interpretou Anita na série “Pequenos Grandes Talentos” (2019), acredita que para além do que viveu, a catarinense atingiu o mérito de ser lembrada.
— A Anita teve uma função importante que foi a de entrar nos livros de história — diz Raquel.
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