Até agora, as respostas da polícia são minguadas para um duplo homicídio de tamanha dimensão. Tanto que, quase um ano depois, sequer conseguiu identificar – ou divulgar – quem estava no veículo que seguiu o carro de Marielle, da Casa das Pretas, na Rua dos Inválidos, bairro da Lapa, até o lugar do assassinato, no cruzamento das ruas Joaquim Palhares com João Paulo I, limite entre os bairros Estácio e Cidade Nova, Centro do Rio. Esse é um dos questionamentos da Anistia Internacional, entidade que exige esclarecimentos sobre os assassinatos.
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– A mensagem do "silenciamento" não é aceita pela família, pelos amigos, pelos ativistas dos direitos humanos. A Anistia Internacional está mobilizada e não vamos descansar até uma resposta concreta – diz Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia Internacional no Brasil.
Em 11 de fevereiro, a ONG publicou o “Labirinto Caso Marielle Franco”, com 23 itens do que considera inconsistências. Além disso, a organização divulga os e-mails – como do presidente Jair Bolsonaro e do ministro da Justiça Sergio Moro – para que pessoas de todos os cantos do planeta também cobrem respostas.
O documento se divide em sete temas (veja no quadro abaixo), itens básicos para que uma investigação seja célere e exitosa: disparo e munição; a arma usada no crime; os carros e aparelhos usados e as câmeras de segurança (desligadas dias antes do assassinato); procedimentos investigativos; responsabilidade e competência das investigações; acompanhamento externo; e andamento das investigações.
O documento da Anistia questiona a falta de respostas, com base em declarações de diferentes atores envolvidos na elucidação, como ministros, policiais, políticos. Quase sempre frases de efeito que não deram em nada. Como o que disse em maio do ano passado o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann: “a investigação está chegando à sua etapa final”.
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– Esperamos respostas das autoridades sobre coisas que elas mesmas disseram, pois cada declaração abre uma vertente de lacunas que precisa ser respondida – diz Jurema, que conheceu Marielle Franco no ativismo social nas favelas cariocas.
Do ponto de vista numérico, as mortes de Marielle e Anderson são estatísticas trágicas. No ano passado, 63 mil brasileiros foram assassinados. Para a diretora-executiva da Anistia Internacional, atingir uma vida é gravíssimo, como também é matar uma pessoa que pauta sua trajetória pela luta dos direitos dos outros.
No caso Marielle, explica, são muitas as gravidades cumulativas, pois além de ser ativista, era uma parlamentar exercendo mandato representativo de parcela da população.
– No caso Marielle, são muitas as gravidades cumulativas, pois além de ser ativista, era uma parlamentar exercendo mandato representativo de parcela da população – diz Jurema Werneck.
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Na noite de 26 de fevereiro, uma perícia complementar foi realizada, incluindo a reconstituição do cenário da Lapa até o Estácio. O delegado Giniton Lages, responsável pelo caso, acompanhou o trabalho também seguido por representantes do Ministério Público do Rio de Janeiro. Sob alegação de sigilo, não responde à imprensa.
A mensagem do "silenciamento" não é aceita pela família, pelos amigos, pelos ativistas dos direitos humanos. A Anistia Internacional está mobilizada e não vamos descansar até uma resposta concreta. Jurema Werneck, diretora da Anistia Internacional no Brasil
Crime provocou desolação entre as mulheres negras
A morte da Marielle Franco foi devastadora para as mulheres negras do Rio de Janeiro. É o que diz a assistente social Lúcia Xavier, coordenadora da Criola, organização da sociedade civil que há 26 anos atua na defesa e na promoção dos direitos dessa parcela da população. Marielle discutia pautas para o mandato com a ONG e isso aproximou também Marinete, a mãe, e a irmã, Ariella. Foi Criola a entidade escolhida por elas para organizar com coletivos feministas e movimento social a programação do dia 14 de março.
– Marielle significou muito na nossa trajetória, tanto como entidade quanto por sermos mulheres negras. Com ela, discutimos temas pertinentes, como mortalidade materna, direitos sexuais e reprodutivos, enfrentamento da intolerância religiosa – conta Lúcia.
O crime deu uma reviravolta na organização. Em seguida ao assassinato, a instituição virou um lugar de peregrinação para mulheres em busca de ajuda: elas achavam que estavam sendo perseguidas, choravam muito e demonstravam desolação, como se tivessem perdido alguém da família. Havia um temor entre todas:
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– Se isso ocorreu com Marielle, uma pessoa reconhecida e com destaque pelo cargo político que detinha, o que não farão comigo? Como fica minha luta, quem vai estar comigo, quem vai nos ajudar?
Se por um lado devastou, também alimentou muitos sonhos. Pelo menos uma centena de mulheres quis se candidatar e buscar formas de reagir se organizando para fazer valer o que Marielle dizia nas audiências a respeito dos direitos das pessoas. Pessoas que nem tinham relações partidárias.
Se isso ocorreu com Marielle, uma pessoa reconhecida e com destaque pelo cargo político que detinha, o que não farão comigo? Como fica minha luta, quem vai estar comigo, quem vai nos ajudar? Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, sobre o sentimento comum
Suspeitas sobre um "escritório do crime"
Com Mônica Francisco foi um pouco diferente. Um dia Marielle Franco mandou que pensasse no assunto. Afinal, 2020 chegaria e era necessário fortalecer as pautas sociais para a população formada por mulheres, negras e pobres da cidade do Rio de Janeiro. Cientista social e pastora evangélica filiada ao PSOL, Mônica Francisco achava que seu trabalho como feminista na equipe de Marielle já era o suficiente.
Mas o assassinato reverteu ideias e acelerou processos. Com 40 mil votos, Mônica Francisco ocupa hoje uma das cinco cadeiras do PSOL na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. O chamado “efeito Marielle” foi grande: dos cinco parlamentares eleitos pelo do partido, três são mulheres negras ligadas ao gabinete.
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Faltou tempo para conversar
Na noite do crime, Mônica Francisco esteve com Marielle na Casa das Pretas, onde trabalhou na recepção do evento sobre ativismo e empreendedorismo. Não houve tempo para conversa. O dia tinha sido intenso na Câmara Municipal, a ex-vereadora chegou atrasada e subiu rapidamente para o andar de cima do sobrado. Em uma das últimas fotos de Marielle, ela aparece sentada com duas mulheres negras de cada lado, de costas para a rua, onde estavam seus algozes.
Um ano depois do assassinato, a deputada Mônica Francisco se diz ainda atravessada pela dor causada pelo brutal duplo homicídio.
– Como parlamentar no Rio de Janeiro, eu vejo como um fato gravíssimo. Mais grave ainda pelas notícias de que agentes de altas patentes encarregados do controle das investigações estarem trabalhando para dificultá-las.
Deputada é cética a respeito de desfecho
Para a deputada do PSOL, o envolvimento do chamado “escritório do crime”, grupo especializado em execuções por encomenda e integrado por policiais corrompidos e ex-agentes que se juntam a criminosos para formar milícias, precisa de uma resposta. Tanto polícias quanto Ministério Público acreditam que esses “profissionais” atuam no planejamento.
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Os milicianos estudam rotina da vítima, trajeto, local ideal para a execução, ausência de câmeras de vigilância, rotas de fuga, arma adequada. Mônica Francisco diz que apesar do clamor popular, da luta da família e das cobranças, há dúvidas sobre o desfecho:
– Quando se olha para todo o processo e vê as relações de muita gente que está no poder com grupos de milicianos, como apontam as investigações, a gente fica na dúvida.
"Marielle ficou acessível para os matadores"
A morte de Marielle Franco chocou não só por ter sido brutal, mas por ela ser uma parlamentar próxima das pessoas, diz a arquiteta Tainá de Paula, que trabalhou com a vereadora e nunca a viu com seguranças. Essa liberdade com que a vereadora se colocava fez com que os executores pudessem se aproximar facilmente do carro onde estava.
— Marielle era uma pessoa muito acessível, tão acessível que foi covardemente assassinada.
Tainá recorda que deveria estar com Marielle na Casa das Pretas, na Lapa, local do último compromisso na noite do crime. Mas teve um evento na Universidade Santa Úrsula e avisou sobre a ausência. No começo da noite, Tainá mandou nova mensagem:
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– Eu desejei boa sorte. Mas ela só viu depois do evento.
A visualização foi às 21h07min, minutos antes de ser assassinada, às 21h30min. – conta Tainá.
A noite do crime foi muito estranha no Rio de Janeiro, diz Tainá. Houve ventania, chuva intensa e muitos raios, mas sem trovão. O carro onde estavam as vítimas do crime ficou por muito tempo aberto e com água entrando. Isso possivelmente tenha ajudado a eliminar provas.
Tainá foi acordada pelo celular. Horas depois ela estaria entre as mulheres que formaram um corredor para receber o caixão na Câmara de Vereadores.
Para Tainá, em breve a polícia revela quem mantou Marielle. Para ela, isso ainda só não ocorreu devido à presença de um poder paralelo que tomou conta dos outros poderes institucionais no Rio de Janeiro.
– É muita inocência achar que a polícia do Rio de Janeiro, que em parte tem envolvimento com grupos de milicianos, não tenha os nomes dos envolvidos nos assassinatos de Marielle e Anderson.
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Símbolo de lutas às vítimas de violência de todo o país
A antropóloga Liliane Brum Ribeiro, da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB), defende que até o fatídico 14 de março, Marielle era uma vereadora só da cidade do Rio de Janeiro. Hoje, é reconhecida como símbolo de lutas nacionais e internacionais importantes num cenário em que se revelam tantos retrocessos a direitos duramente conquistados.
— Marielle está em grafites por todo o mundo, esteve presente em blocos de carnaval de Norte a Sul do país, inspirou tema de sambas enredos das maiores escolas, tornou-se grito até então sufocado ou não visibilizado do basta das violências, do racismo.
Denúncias contra o preconceito
Além disso, observa a antropóloga, ainda que tenham eliminado Marielle do convívio com as pessoas, a presença dela continua a inspirar denúncias de preconceitos.
– É impossível os criminosos apagarem o que foi e o que representa Marielle, uma jovem mulher preta, favelada, bissexual, feminista, que ameaçava o poder paralelo que se impõe no Rio de Janeiro pela força, subjugação e imposição do medo.
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Para Liliane, a realidade mostra que independente de atuar no Rio de Janeiro, Marielle torna-se símbolo das vítimas de feminicídios, das mães que enterram os filhos negros assassinados, das mulheres violentadas nas cidades brasileiras.
– Acho que em breve a polícia divulgará quem matou. Mas queremos mais: é preciso saber quem mandou matar e os motivos de terem executado Marielle, eliminando ainda o seu motorista que estava trabalhando, e por muito pouco não dão fim também à assessora que conseguiu escapar da emboscada – observa a dirigente da AMB.
Como parlamentar no Rio de Janeiro, eu vejo como um fato gravíssimo. Mais grave ainda pelas notícias de que agentes de altas patentes encarregados do controle das investigações estarem trabalhando para dificultá-las. Mônica Francisco, deputada estadual do Rio de Janeiro
É muita inocência achar que a polícia do Rio de Janeiro, que em parte tem envolvimento com grupos de milicianos, não tenha os nomes dos envolvidos nos assassinatos de Marielle e Anderson Tainá de Paula, amiga de Marielle e ativista social
Acho que em breve a polícia divulgará quem matou. Mas queremos mais: é preciso saber quem mandou matar e os motivos de terem executado Marielle, eliminando ainda o seu motorista que estava trabalhando, e por muito pouco não dão fim também à assessora que conseguiu escapar da emboscada Liliane Brum, antropóloga e ativista da Articulação de Mulheres Brasileiras