A mulher entra no ônibus falando ao telefone. Empaca na roleta. O cobrador a ajuda a desvencilhar a alça da bolsa. Ela caminha até o fundão e se joga no assento do meu lado. Não cumprimenta ou pede licença. Tudo bem, eu arrumo minha mochila no colo. A dona está visivelmente estressada. Pra não dizer p… da vida. Fala com a Manu. Imagino que seja filha, e jovem. Sei disso porque a maioria das Manu, Manuelas, de hoje são jovens. Os Manoel são quase sempre mais velhos, como era o meu avô, já falecido. Pode ser que alguns também sejam, mas a grande maioria das Manu é formada por um juvenil feminino.

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Entendo o estresse da dona: não tinha conseguido xerocar todos os documentos pra Manu, que quer trocar de universidade e deixa pra mãe resolver na última hora.

Por que tu não tratasse disso antes, Manu?

Tem outro fato que incomoda a dona. Ela tinha deixado para pagar o IPVA hoje. E ainda está com pouco dinheiro. Manu tem culpa nisso. Anda botando dinheiro em uma “escola”, qual não sei o tipo, mas descarto o ramo: de samba que não é. Essas, definitivamente estão mal das pernas.

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Por falar nisso, a dona tem razão, Manu: ir para o Centro de ônibus, fazer xerox dos teus documentos, encarar a fila no banco. Tudo isso é cansativo, ainda mais que a mãe também está certíssima quando diz que, mesmo sem sol, está um calorão danado. E esses ônibus não têm ar-condicionado, Manu! Pô, Manu!? Agora é que você lembrou que o IPVA do teu carro também tem que ser pago?

Ah não, Manu! Aliás, você agora não é mais Manu. Agora, em alto e bom som, você é Ma-no-ela! Xiii, encrespou. Quando mãe deixa o apelido do pimpolho (no caso pimpolha) de lado para chamar pelo nome próprio é que a coisa ficou séria. Claro que tem exceções: quando estão orgulhosas, quando querem impressionar um conhecido, falar das nossas conquistas. Não é esse o caso: sua mãe não me conhece, nem os demais passageiros do ônibus lotado que está prestes a cruzar a ponte.

Sabe o que é, Manu? Vocês (acho que possui irmãos) recebem tudo de mão beijada. Mas em vez de ajudar, deixam tudo pra última hora! E tem mais, Manuela: você está me explorando.

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Calma! É sua mãe que está dizendo isso, estou apenas reportando.

Mas concordo com ela em uma coisa: esse negócio de comer no shopping todo o dia não é legal. É caro e você fica comendo bobagem. Oh, em casa tinha frango grelhado, arroz, feijão e salada. Ah, não! Você fez um lanche de novo!!!

Manuela, hoje é só dia 13 e a mãe está sem dinheiro. Ajuda a mãe, Manoela… Olha, assim não dá. Esse negócio de trocar de curso, Manoela. Queria porque queria fazer geografia. Agora, quer ir pra design! É, Manoela, o tempo de colégio terminou! Aprende, Manoela! Tem que estudar na universidade. Tu não visse a menina negra que passou na USP? É, deu ontem no Fantástico.

Tá, Manoela, eu sei que o Fantástico é ruim. Mas tem coisa boa! Ela passou em primeiro lugar em Medicina da USP, Manoela. Medicina, tu entendeu? Que gritando, Manoela! Vontade eu tenho de gritar! Mas adianta? Adianta falar alguma coisa? Vocês têm tudo em casa: comida, roupa, carro. Aliás, Manoela: trata de arranjar dinheiro pra pagar o IPVA. Liga pro teu pai e dá um jeito. Hum, acho que o casal é separado. Manu, ops! Mamãe se acalmou…

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Tá, o ônibus chegou. Vou ali fazer o xerox, tomara que consiga ir lá na faculdade e entregar a papelada. Depois vou no banco tentar pagar o IPVA. Vê se chega cedo, Manu. Como não, Manu? Por que você não vai direto pra casa?

Por quê, Manoela?

Por quê, Manu?

E a mulher sai do ônibus falando ao telefone…