O Réveillon tem essa magia, de fazer com que a gente acredite que algo termina para que o novo assuma seu lugar. É um período confuso, em que descrentes escolhem as roupas com base na cor da lingerie e evangélicos pulam ondas de Iemanjá. Há quem coma romã e guarde os caroços na carteira – na falta desta fruta, servem as uvas: são menos gourmet, mas o efeito é o mesmo. É noite de banhos demorados, pensando na vida que se foi e nos dias que virão, com direito a esponja para deixar a poeira do passado escorrer ralo abaixo e sal grosso para purificar a alma (se alguém estranhar, a gente diz que é um esfoliante natural e a pele fica maciazinha).

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Funciona? Diga-me você, caro leitor. Já faz alguns anos que deixei para trás as simpatias de Ano-novo (ou de qualquer outra sorte). Imagine você alguém que não planeja com antecedência a cor da virada, alguém que muitas vezes não está à beira-mar, que não come porco que-fuça-para-frente – ou ainda: que come galinha, mesmo que cisque para trás! Imagine a vida desse alguém a partir da última das doze badaladas da noite de fim de ano. Será mesmo que a sorte vira as costas e vai segurar firme nas mãos de outra pessoa com mais amuletos?

Quando pequena, eu adorava passar a virada na casa da minha tia Mércia. Era um verdadeiro Réveillon brasileiro, com todo tipo de ritual. A lentilha era cozida, a sidra, colocada para gelar, e todo mundo dava um jeitinho de colocar na carteira pelo menos uma notinha de dinheiro. Quando a televisão anunciava a contagem regressiva oficial – porque oficial, no Brasil, é o horário da televisão -, a gente contava junto e, ao chegar ao zero, todo mundo se abraçava e cantava “adeus, ano velho. Feliz Ano-novo…”.

Depois, cada um realizava seu rito de passagem de um ano a outro com o que achava mais conveniente, enquanto minha tia Marli, irmã da tia Mércia (que nem era minha tia de verdade, mas eu queria muito que fosse), insistia que eu comesse só um pedacinho de abóbora, para dar sorte. O destino a levou embora tão cedo, e hoje, se pudesse, eu comeria um pedacinho ao menos para vê-la sorrir mais uma vez.

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Ao iniciar este novo ano, faça todos os rituais que acredita serem bons, pense na sorte, no dinheiro, no amor, na saúde e na felicidade. Mas não se esqueça das pessoas: elas são mais breves que o tempo – e nem sempre algo que termina abre espaço para que o novo assuma seu lugar.