Aquela cena de sempre: trânsito parado, correria do dia a dia. A única diferença era que, naquele dia, ela não tinha ido ao trabalho: tinha tirado um dia de folga, descontando oito das tantas horas do banco para levar o carro ao mecânico – essa tarefa árdua para as mulheres, que são obrigadas a lidar com profissionais nem sempre gentis, mas sempre desconfiados de que elas mal compreendem o que eles dizem. Para tanto, convocou o marido, parceiro de longa data, para ser seu fiel escudeiro. Ela dirigia um carro; ele, outro. Afinal, era necessária uma carona na volta.
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Problema identificado, carro deixado na oficina. Voltaram os dois, ela e o marido, lado a lado. Foram a uma padaria para um café da manhã mais caprichado, coisa cada vez mais rara, já que o ano é de crise e grana não cresce como grama. A crise deve estar feia, mesmo: a padaria escolhida, apesar do movimento, não tinha café. Dada meia-volta, procuraram outro lugar e foram parar noutra padaria, anexa a um restaurante, onde costumavam almoçar no início do namoro.
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Ela reparou que o modo como ele mexia a colher na xícara de café não tinha mudado nada: ele batia com o metal nas bordas da cerâmica, num gesto ritmado, fazendo tilintar uma sinfonia que lhes era familiar. Distraído, ele olhava a branca espuma do leite misturar-se ao tom terroso do café e nem sequer percebia que ela o observava. Se seus hábitos não tinham mudado nada, o mesmo não se podia dizer dos cabelos: brancos fios se espalhavam por todos os lados, e as entradas na testa não davam chance de dúvida quanto à genética herdada. Ainda assim, ele lhe parecia o mesmo cara da primeira vista, há dezessete anos.
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Mais tarde, quando foram buscar o carro pronto na oficina, ela o seguiu. Ele mantinha o carro silencioso, atento ao trânsito. Já ela chacoalhava a cabeça aos ritmos dos anos 90 que Luciano Costa tocava na rádio. Quando a primeira nota da guitarra atingiu seus ouvidos, ela se lembrou das tantas vezes que lhe cantara aquela mesma música nos karaokês do Ópera ou do Strike. Encarando os olhos do marido pelo retrovisor, fez um gesto, apontando para a direção do rádio e depois para o ouvido. O marido entendeu a deixa e ela viu quando os olhos dele sorriram ao reconhecer a canção.
Sintonia não é essa coisa que localiza a estação na rádio. Sintonia é o arrepio que ela sentiu ao perceber que, mesmo sem uma palavra, eles se entendiam.