No corredor dos salgadinhos e biscoitos no mercado, sentada numa das mesinhas da cafeteria, tomava meu café sem pressa, quando dei de cara com uma figura rapidamente reconhecida por minha memória de infância. Ali, usando uniforme azul e arrumando as prateleiras com sacos de batatinha, Fábio, o moço gordinho de cabelos loiros, trabalhava compenetrado.
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Um cliente passou por ele, soltou uma brincadeirinha sobre um time de futebol. Fábio retrucou, num timbre de voz alto e grave, que o outro não podia falar nada, que o time dele também não era grande coisa. O cliente riu e se foi, deixando-lhe um tapinha amigável no ombro. Havia uma cumplicidade ali que só um olhar atento reconheceria.
Fábio foi o primeiro contato que eu tive, ainda na escola, com um aluno de inclusão — isso numa época em que o termo inclusão não existia (pelo menos, não na acepção com que é usado hoje nas escolas). Várias vezes, na hora do recreio, presenciei meninos e meninas implicando com ele, só para vê-lo enfurecer-se e sair correndo em busca de vingança. Não é que meninos e meninas sejam maus, desalmados ou pouco empáticos. Minha experiência me diz que meninos e meninas não conseguem reconhecer que o outro é diferente, que tem uma condição especial e que precisa ser encarado com outros olhos.
Hoje em dia, temos muitos Fábios e Fábias na escola. Na escola atual, Fábio teria direito ao acompanhamento de um segundo professor, que seria responsável por auxiliá-lo a se integrar com os alunos típicos, por fazer a ponte com os professores das disciplinas e a adaptação de conteúdo necessária para que Fábio se desenvolvesse da melhor forma que ele conseguisse. Eu não sei como Fábio era avaliado na escola, mas, hoje, os professores já são capazes de encarar a condição dos Fábios de outra maneira, mais humana, mais específica para ele.
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Terminei meu café com um gole longo, enquanto Fábio se afastava, empurrando o carrinho com os produtos para longe de mim. A realidade é um doce-amargor. Fábio provavelmente não se lembra de mim, mas fico feliz que, nesse mundo tão focado na competição e na busca por ser sempre o melhor, ele tenha conseguido um espaço de trabalho digno, que seus colegas de trabalho o tratem com respeito e carinho, que os clientes brinquem com seu time de futebol (mesmo que ele pareça bravo como era na escola).