Ancestrais e atemporais, as tranças têm lugar garantido na memória e na vida de muitas pessoas negras. Seja para quem as usa, seja para quem as faz. O penteado não é novo, pois a história mostra que as tranças já existiam bem antes de Cristo no continente africano.

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O penteado tinha a função de identificar – a tribo, a idade, o estado civil, a riqueza, o poder e a religião de uma pessoa – ou de garantir a proteção dos fios. Atualmente, a infinidade de opções e estilos fazem a modernidade e a resistência caminharem lado a lado com essas funções.

— Se antes a trança era muito nesse jogo de buscar esconder o cabelo natural, o crespo, agora ela vem justamente valorizar. As tranças ganharam um destaque gigantesco — afirma a pesquisadora da UFSC, Larisse Pontes, que é antropóloga na área de ocupação.

Propósito de vida

Solimar Nascimento Antualpa, a Sol, de 64 anos, é referência do ofício em Florianópolis desde 1996. Ela fez, e ainda faz, parte da construção deste processo de valorização das tranças.

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— A importância maior das tranças é a afirmação da presença da pessoa negra usando o estilo de cabelo que é próprio, que é seu — afirma Solimar.

Paulista de nascimento, chegou nos anos 1990 em Santa Catarina e trouxe na bagagem influências da maior capital do Brasil. Secretária de uma multinacional durante a semana, e cabelereira aos sábados, ela aprendeu a técnica das tranças com pessoas africanas que conheceu no meio afro paulistano.

— Aprendi rápido. Não tive dificuldade. Acho que tem coisa que faz parte do nosso propósito de vida, né? — relembra.

Quando chegou em Santa Catarina, não teve mais a possibilidade de atuar como secretária e viu nas tranças a possibilidade de renda.

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— Meus filhos usavam tranças, as pessoas começaram a perguntar. O boca a boca funciona muito bem. Tinha qualidade no trabalho, uma coisa que as pessoas começaram a ver. As pessoas perceberam que também poderiam usar e ficaram confortáveis em fazer — relembra.

Trancistas reforçam a importância da consciência racial

Sol chegou a atender na residência dos clientes, prática comum para muitas trancistas, mas conseguiu abrir seu próprio salão de beleza que hoje oferece tranças e outros tratamentos capilares. Com a ajuda das filhas Tamis Nascimento Antualpa, de 35 anos, e Sâmia Nascimento Antualpa, de 37 anos, Sol faz cerca de 90 tranças mensalmente – valor que dobra com a chegada do final de ano.

— Quando você vê uma pessoa passando com tranças, o que você tem que pensar é: “Nossa, aquela pessoa se cuida muito, aquela pessoa se gosta. Aquela pessoa fez uma coisa linda!” Fala-se muito hoje em terapia capilar, mas a trança é uma terapia também, não só uma terapia porque você está trabalhando o seu visual, você está se cuidando, você vai tirar aquele tempo pra se cuidar, mas o trabalho de trançar também é uma massagem no couro cabeludo. Os xampus especiais que usamos, produtos super perfumados, óleos essenciais, é tudo muito terapêutico! — afirma Sol.

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Aprendendo na prática

O ritmo nesta época também é frenético para as amigas Tuany Regina Domingos, de 29 anos, e Ana Cristina Santos, de 19 anos. Uma com estúdio em São José e outra na Ilha de Santa Catarina. A procura aumenta, segundo elas, até 80% nesta época em razão das festas de final de ano, onde muitas mulheres permitem investir no procedimento – que além de oferecer praticidade, garantem o “close”.

As duas profissionais tiveram contato muito cedo com a arte das tranças, mas a ideia de fazer do ofício fonte de renda principal só veio recentemente.

— Eu já sabia fazer trança e percebi que vou dar continuidade, vou me aperfeiçoar, praticar mais, atender modelos e foi indo assim, até onde eu estou, fui aprendendo assim na prática — afirma Tuany.

— Comigo não foi diferente, eu também comecei me autotrançando e depois que eu já estava quase inserida dentro, aí eu percebi que dava pra eu fazer dinheiro com isso — complementa Ana Cristina.

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Ana e Tuany chegam a trabalhar de oito a 10 horas sozinhas em uma mesma cabeça. A atividade artesanal é cansativa, já que ficam durante todo esse tempo em pé, mas a recompensa, segundo elas, vem com o resultado.

— Tu vai criando um certo vínculo com os clientes. Isso vai além da trança. Não é só trançar ou fazer o penteado. É realmente resgatar a ancestralidade daquela pessoa e ainda assim transformá-la por fora e por dentro. É uma transformação de modo geral — explica Ana.

Aumentar o espaço que atuam e investir em cursos para capacitar outras trancistas está no radar das amigas.

— A intenção é formar novas profissionais para que elas trabalhem comigo — afirma Ana Cristina.

Consciência racial

Larisse Pontes, que é antropóloga na área de ocupação.

— O quanto as tranças são símbolo de estilo, de modernidade, e também uma forma de diversificar. Acho que as mulheres negras estão ganhando tanto poder nesse sentido, a partir dessas mudanças estéticas, que as tranças vieram com mais uma opção de mudança. Você bota uma lace, raspa, faz trança, usa ele crespo. As mulheres negras estão sem medo usar seus próprios cabelos — conclui.

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— Eu reverencio África porque se eu ainda faço o que eu faço, algo que eu amo, é porque isso está ligado à minha ancestralidade! — reforça Sol.

Em foco, mas ainda desvalorizadas

Sol, Tuany e Ana Cristina são categóricas em dizer que a quantidade de trancistas vem aumentando ano a ano. Hoje não há um levantamento que mostra quantas trancistas atuem em Santa Catarina e nem no Brasil. Essa invisibilidade da atividade é, inclusive, um ponto muito levantado pelas profissionais.

— Hoje em dia, não tem um CNPJ próprio. Tem de cabeleireiro, de manicure, mas não tem a nossa profissão. E isso faz diferença, né?! É valorização. Por mais que tenham muitas pessoas trabalhando com isso, ainda hoje o trabalho não é tão valorizado assim, ainda mais aqui [em SC] — explica Ana.

— Precisamos de incentivo, financeiro mesmo, linhas de crédito, porque às vezes a trancista ainda está atendendo a domicílio. Ela quer melhorar, quer ter um lugar bacana, mas às vezes ainda não deu, porque o dinheiro desse trabalho ainda está colocando comida na mesa, está pagando material escolar — pontua Sol.

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O preço das tranças varia de acordo com o estilo – que pode ser desde Nagô, fulani, box braids, dreadlocks -, do tipo de fibra utilizada e também da quantidade de cabelo do cliente. Mas os valores podem chegar a R$ 800.

— Muita gente questiona o preço das tranças. Antigamente era mais em conta. Mas hoje em dia não é só uma trancinha para nós. É a nossa fonte de renda! — complementa Tuany.

Para além da valorização monetária, o setor também precisa de regulamentação.

— Afinal de contas, é uma atividade laboral que exige muito da pessoa. Muitas vezes acaba causando alguma situação de adoecimento pelo ofício das mãos e o movimento repetitivo também. Isso tudo também a gente precisa pensar. E a maioria das trancistas são negras, principalmente mulheres. Então, mais uma vez, as mulheres negras acabam sendo local de uma série de opressões e, ao mesmo tempo, de precarizações. Que acabam abreviando a vida das mulheres e a qualidade de vida delas. A valorização das tranças tem sido muito importante, mas eu acho que precisamos ainda pensar em termos mais formais do que a gente pode, de alguma forma, construir para poder resguardar mais essas pessoas e essas profissionais — conclui Larisse.

Projeto celebra a história negra

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