O esporte, e o futebol de forma particular, reproduz sob outra forma os conflitos e os problemas existentes na sociedade, e os transforma em jogadas, em passes, em dribles, em gols. Ou seja, é uma transmutação daquilo que habitualmente seria horrendo, doloroso, brutal, por vezes cruento, e que agora passa a ser um jogo. E há quem afirme, com todas as razões, que o futebol é apenas um jogo, não mais que um jogo. Toda vez que se quiser colocar dentro dele elementos estranhos à sua formulação habitual, trazendo o conflito das pessoas, dos grupos, da afirmação de um sobre o outro acima da mediação democrática da bola, aí se tem outra coisa, que não o futebol.
Continua depois da publicidade
A despeito disso, a política sempre insistiu em ganhar dividendos com o futebol. Na Copa de 1934, o lema da seleção da Itália fascista era “Vitória ou morte”. Aí temos Benito Mussolini, Il Duce, o tirano típico. Ele criou slogans populares que acabaram determinando para o povo italiano, de certa forma, uma realização de desejos. “Pátria ou morte” é demasiado, mas está expresso aí um conflito de forma radical, e que serviu por muito tempo de orientação. Mussolini fez do futebol um sucedâneo de suas ideias, voltando às origens do futebol, fazendo com que o esporte pudesse ser a guerra sob outras formas. Mas, no futebol, a vitória não é a morte do adversário. A vitória é apenas a superação do adversário nos termos dele. Isso é a qualidade maior do jogo: uma proposta de enfrentamento, em termos reconhecidos por todos, com legislação bem integrada e reconhecida também, com arbitragem capaz de criar isenção ou por uma compreensão acima daquele conflito generalizado e suado.
Não se pode reduzir a realidade aos interesses da política ou de um líder político. Em 1978, por exemplo, na Copa da Argentina – eu estava lá -, vigia a ditadura militar do general Videla, que morreu no mês passado. Uma ditadura enérgica, brutal, como não tivemos aqui a rigor – embora não haja ditadura melhor que outra, vale frisar. E, mesmo assim, não se via discurso em praça pública, não se viu passeata, não se viu muito que se pudesse caracterizar a utilização, pelo ditador e por seus asseclas, da Copa. O que ocorreu é que o poder teve de se submeter aos valores do futebol e, muito discretamente, sugerir a afirmação de que aquela era uma Argentina organizada, capaz de sediar uma Copa.
Observe Getúlio Vargas. Foi um presidente de República, criador do Estado Novo, figura histórica do Brasil. Dele se ouviu com clareza a seguinte observação: “Num estádio de futebol, se há futebol, não tem discurso”. Interessante. Mesmo quando o São Januário, maior estádio da época, lotava para as festas do 1º de Maio, Vargas tinha receio de que o público não aceitasse manifestações políticas. E tinha razão. Se hoje você vai a um estádio de futebol, com todos esperando o início do jogo, e alguém decide discursar – não importa quem seja – será vaiado. Brutalmente vaiado. O que significa isso? Que o futebol é infenso à política? Não. O futebol é, isso sim, profundamente cioso do seu lugar, aquele espaço onde as coisas se realizam, são verdadeiras e onde podem ser cobradas.
O futebol não divide espaço – ou é ele, ou não é. A qualidade desse esporte não é ser ingênuo, distraído ou fora da realidade, mas o fato de que ele é, absoluta e completamente, dominador.
Continua depois da publicidade
Não há como escapar do futebol.
O poder e a bola
Confira momentos em que política e futebol se confundiram ao longo da história:
O fascismo
Copa de 1934, na Itália de Mussolini. Os donos da casa faziam a saudação fascista no hino e jogavam sob o lema “Pátria ou Morte”. Foram campeões.
Feridas curadas
Para curar as chagas da II Grande Guerra era preciso habilidade. Por isso, a Fifa escolheu três sedes “neutras” no pós-guerra: Brasil, em 1950, Suíça, em 1954 e Suécia, em 1958.
Guerra da bola
Uma disputa econômica entre El Salvador e Honduras, nas eliminatórias da Copa de 1970, chegou ao campo de jogo e se estendeu para os campos de batalha. Foi a Guerra do Futebol.
Taça política
Em 1962, o presidente João Goulart fez lobby para Garrincha não ser suspenso durante a Copa e depois comemorou a vitória canarinho tomando champanha na Jules Rimet.
Continua depois da publicidade
Sheik em campo
Na Copa de 1982, o Sheik do Kuwait desceu da arquibancada para anular um gol da França contra seu país. Alguém teria apitado no público, e os jogadores do Kuwait pararam. Depois da confusão e do turbante em campo, o gol foi invalidado.
Levante húngaro
Em 1956, tanques do Pacto de Varsóvia esmagaram um movimento democratizante na Hungria. Vários jogadores da seleção magiar deixaram o time nacional, em protesto. Inclusive o craque Puskas, que, em 1962, jogou a Copa pela Espanha.
Pra frente, Brasil
A campanha da Copa de 1970 teve a marca da ditadura: o técnico comunista João Saldanha foi afastado em favor de Zagallo, e a comissão técnica reuniu vários militares. O tricampeonato embalou a propaganda de um Brasil gigante e vitorioso.
Bem longe de Videla
O holandês Cruyff e o alemão Breitner não foram à Copa de 1978, na Argentina, em protesto contra a ditadura militar de Jorge Rafael Videla. Os holandeses, ao receberem a medalha de vice-campeões, recusaram-se a cumprimentar os militares.
Continua depois da publicidade
Paz em campo
Durante a Copa de 1998, EUA e Irã, rivais na política, celebraram a paz no futebol. Os países não se entendiam desde a derrubada do Xá, em 1979. Jogadores dos dois times trocaram flores antes do início da partida, vencida por 2 a 1 pelo Irã.
Vingança malvina
Na Copa do México de 1986, Inglaterra e Argentina se enfrentaram quatro anos após a Guerra das Malvinas. Maradona disse que o jogo serviu de vingança pela derrota militar. E com requintes de crueldade: um gol de mão e outro driblando cinco ingleses.