Qual a primeira coisa que você diria se um amigo lhe confidenciasse que está apaixonado por mais de uma pessoa? Muitos responderiam que ele precisaria escolher. Provavelmente, o próprio amigo se sentiria na obrigação de decidir entre elas. Aqui vai uma pergunta: você acredita que é possível amar várias pessoas ao mesmo tempo? Não? Aqui vão outras, então: você ama diversos amigos? Ama todos os seus filhos? Ama seus pais, familiares, os animais de estimação? Por que, então, não pode amar e se apaixonar por vários alguéns?
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É isso que questionam grupos com cada vez mais adeptos no mundo todo. Parece loucura? Na década de 60, se você dissesse que em 20 anos as mulheres não se casariam mais virgens, seria tachado de louco. Se falasse que a separação e o divórcio se tornariam comuns, seria tachado de louco. Mas tudo isso aconteceu.
No livro A Cama na Varanda, a psicanalista Regina Navarro Lins explica que o amor romântico povoa as mentalidades do Ocidente desde o século 12. “Esse tipo de amor é regido pela impossibilidade, pela interdição, e caracteriza-se pela idealização do outro. Mas somos tão condicionados a desejar vivê-lo que é comum se falar de amor como se ele nunca mudasse”, escreve ela.
Quando o amor romântico começou a ser uma possibilidade no casamento, foi uma revolução. Houve uma liberação, uma destruição de poder, e o discurso dos jovens se tornou aquele já tão conhecido “Não vou me casar com a pessoa que meus pais escolheram, só vou casar com quem eu amo”.
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O dilema atual dos relacionamentos, para Regina, parece se situar entre o desejo de simbiose com o parceiro e o desejo de liberdade. Para a psicanalista, “o amor romântico começa a sair de cena, levando com ele a idealização do par romântico, com a ideia de os dois se transformarem num só e, consequentemente, a ideia de exclusividade”. A aproximação afetiva e sexual será entre pessoas inteiras e não a fusão de metades.
Apesar disso, a ênfase cultural, religiosa e psicológica que é dada à monogamia faz com que poucos se deem conta de que podem decidir sobre quantos parceiros amorosos/sexuais desejam ter.
A monogamia, segundo a hipótese mais difundida e aceita por estudiosos sobre o assunto, é uma prática que coincidiu com a instalação da sociedade patriarcal e da propriedade privada. Há cerca de 5 mil anos, o homem descobriu que participava do processo de procriação e passou a exigir exclusividade sexual da mulher, porque assim teria certeza da paternidade e poderia deixar a herança apenas para os filhos legítimos. Antes disso, as pessoas se relacionavam livremente.
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Ao negar o modelo monogâmico e heteronormativo, são abertas novas possibilidades de relacionamento. Não se trata da procura obsessiva por novas relações, não se trata de infidelidade, nem de promiscuidade.
Uma relação de múltiplos parceiros pode, sim, ser estável, responsável, consensual, enriquecedora e duradoura. E pode ou não envolver casamento e filhos. Talvez se enquadre em uma relação aberta, livre, poliamor ou outro modelo poligâmico. Talvez seja uma mescla de todos e não se enquadre em nenhum. O importante é saber que existe a opção.
Como manter a sintonia
A professora universitária e especialista em sexualidade humana pela USP-SP Fabiane Dell’Antonio conta que no atendimento clínico e em palestras escuta muitas reclamações em relação à falta de diálogo sobre o relacionamento e a vida sexual do casal.
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Homens dizem que as mulheres não têm desejo e elas afirmam que não são estimuladas adequadamente. Assim, a mulher faz sexo para agradar ao marido e não sente prazer. Com o tempo, isso causa desconfortos físicos e emocionais, diminuindo o desejo dela.
– Muitos homens não apresentam boa desenvoltura sexual para proporcionar o prazer da mulher, pois foram educados para serem servidos por elas, e não sabem como as estimularem de forma adequada. Para eles, é mais fácil e cômodo fazer sexo com outra mulher com a qual não têm envolvimento emocional e “obrigação” em oferecer o prazer do que aceitar suas limitações – explica a sexóloga.
Segundo ela, primeiramente o casal precisa saber exatamente quais são suas vontades, necessidades, desejos e limites individuais, para posteriormente estabelecerem as regras e os limites que devem seguir durante as práticas sexuais que irão adotar. É fundamental que sejam cumpridas as regras preestabelecidas, pois se uma das partes começa a fazer sacrifícios constantes, a união sofre um desequilíbrio e requer ajustes.
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Fabiane acredita que, atualmente, o sexo está banalizado e superficial, e homens e mulheres sentem necessidade de intimidade e companheirismo além da cama. O que observa-se atualmente nos relacionamentos, segundo ela, é muita intolerância e imediatismo na busca do prazer e dos desejos individuais, tornando os relacionamentos descartáveis na face de algum problema.
Liberdade de escolha
Eva* é uma professora de 25 anos. Romeu* é economista e tem 31. Eles se conheceram há um ano. Atraída, Eva comentou sobre o interesse com um amigo em comum. Foi o suficiente para que Romeu soubesse dela e a adicionasse no Facebook. O primeiro papo virtual durou seis horas. Depois vieram outras conversas e o primeiro encontro. Desde então, não se separaram mais.
No início, não planejavam se preocupar muito, queriam apenas curtir. Começaram a experimentar juntos, realizar fantasias. Rolou sexo com amigos, com outros casais. Tudo encarado de forma muito natural.
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Quando se conheceram, os dois haviam saído de relacionamentos sérios havia menos de um mês. A relação anterior dele era aberta; já Eva nunca tinha vivido algo assim. Insegura sobre os sentimentos do companheiro, ela ficava o tempo todo querendo categorizar o que eram: namorados, ficantes, amigos, amigos com sexo. Em julho de 2013, ela iria passar uma semana fora do país. Antes de embarcar, decidiram oficializar a relação e passar um tempo monogâmicos.
– Eu não sigo essas regras de esperar três encontros para transar. Vai que morro amanhã! Além da química sexual, começamos a perceber que o papo também era bom. Então puxamos o freio de mão por um tempo para ver se éramos apenas parceiros de sexo ou se dávamos certo como casal também – conta ela.
Apesar da necessidade de definir a relação, Eva, muito independente, tinha medo do forte vínculo criado pelo convívio diário. Havia, por parte dela, muito receio de morar junto, casar, admitir que a relação era tão séria. O medo de perder a liberdade, no entanto, se dissipou quando Eva percebeu que com Romeu se sentia livre para ser ela, sem fingimentos.
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– Quando entramos numa relação aberta, você passa a se gostar mais, a apreciar o próprio corpo, a se conhecer melhor. Não existe esse medo de a outra garota ser mais bonita ou o homem ter um pênis maior. Não preciso fingir, sou eu mesma. Partimos sempre do diálogo e a liberdade é igualitária: o que um pode fazer, o outro também. Há acordo de não ficarmos com determinadas pessoas, como ex-namorados e namoradas ou gente que não goste de um de nós – explica Eva.
Há cinco meses, o casal passou a dividir o mesmo apartamento. Além de viver juntos, costumam compartilhar outras companhias. Na maior parte das vezes, as experiências com outras pessoas ocorrem com os dois ao mesmo tempo. Ou então separados, por exemplo, mas na mesma festa. Depois, um conta para o outro como foi e se excitam ao relembrar as histórias.
– Se eu estivesse solteiro, certamente faria bem menos sexo e teria menos experiências diversificadas do que casado. E ainda tenho uma companheira fantástica ao meu lado! – diz Romeu.
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– E não é uma questão de usar a pessoa pra gente se realizar. Nós também proporcionamos prazer a quem se relaciona conosco – completa Eva.
Se rolam ciúmes? Um pouco, eles respondem. Eva acredita que consegue separar melhor o carnal, o beijo, o desejo do sentimento. Mas, talvez por isso, é ela quem se incomoda mais com trocas de carinho. Quando percebe que Romeu despende muita atenção a outra mulher, às vezes se sente ameaçada. Isso é mais forte do que vê-lo transando com outra. Os dois entendem os ciúmes como algo maléfico à relação e tentam trabalhar essa barreira.
– Ciúme não é amor, é sentimento de posse. E isso não é positivo. É baseado na insegurança apenas. Eu sou apaixonado por ela não por me dar algo em troca, mas porque ela é ela. Hoje, o sexo é secundário na nossa relação. A gente gosta de estar junto, conversar, dar risada.
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Muito pior do que os ciúmes, eles garantem, é o preconceito. Por se relacionarem com outras pessoas, muitos assumem que eles têm DSTs. Esse é o primeiro ponto. Quando alteraram o status no Facebook para “em uma relação estável”, ficou mais difícil para Eva paquerar. Segundo ponto.
– “Ah, porque agora você está casada”, justificam as pessoas (Eva é bissexual). Eu já estava antes, só oficializei numa rede social! É mais fácil eu ficar com garotas, elas são menos preconceituosas. Homens, às vezes, pensam que vou ficar com qualquer um, que não tenho preferências, que não sou seletiva – conta.
– Às vezes, ele dá em cima de outras mulheres e acham que não sou boa suficiente. Tenho que ser um símbolo de moralidade para muita gente. O mundo é machista, então tem gente que vai me tachar de vadia, enquanto sobre ele vão dizer que é espertinho, que está aproveitando.
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– Acho tranquilo a pessoa querer saber se nos preservamos, se usamos camisinha. Todo mundo que faz sexo precisa se cuidar. Mas fora isso é ofensivo, assim como é ofensivo pensar que todo homossexual tem DSTs. A vida toda, você aprende a seguir um padrão, não a se conhecer. E esses padrões geralmente não batem com a realidade, aí você passa a questioná-los. É o fim do mundo para muitos casais monogâmicos falar para o parceiro que acha outra pessoa atraente. O parceiro já fica emburrado, é motivo de briga. O mais difícil é desconstruir esse tipo de comportamento – afirma Romeu.
Muito expansiva, comunicativa e bem articulada, Eva passou um pouco de seu jeito para o parceiro. Hoje, Romeu é menos fechado, aprendeu a materializar seus sentimentos e se abrir mais. Assim, na base do diálogo e da sinceridade, eles adaptam o relacionamento conforme sentem necessidade de mudanças. Para Eva, é preciso aproveitar o hoje, sempre com respeito ao outro.
– Acho que há é muita hipocrisia. Há uma pressão social imensa. As pessoas assumem aquele papel e muitas vezes fazem escondido. A tendência é de que haja uma abertura maior com o tempo, para que as pessoas expandam seus desejos às relações humanas, não apenas a objetos, como no caso de sex shops. As pessoas costumam reagir com curiosidade e admiração, porém concluem com um “mas”. “Mas eu não conseguiria, mas não dá certo”. Para a gente, é algo natural. No entanto, muitos ainda nos tratam como seres exóticos.
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*Esses nomes são fictícios. Todas as informações contidas aqui, no entanto, são reais. O anonimato do casal nada tem a ver com vergonha do modelo de relação que adotaram. Pelo contrário: eles gostam de esclarecer as pessoas e se mostram satisfeitos com o relacionamento. Muita gente, no entanto, não compreende suas escolhas. Para evitar represálias no trabalho ou de familiares, preferem manter sigilo.
Modalidades
Relação sem vínculo: quando uma pessoa prefere variados acessos sexuais sem continuidade e sem formação de casal ou de vínculos estáveis.
Amizade colorida: quando uma pessoa evita a formação de casal e se permite o acesso sexual eventual com a leveza das relações de amizade.
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Relação aberta: quando, de forma consensual, um casal de namorados acerta o direito comum a outras relações simultâneas, mas na condição de serem secundárias.
Casamento aberto: quando, de forma consensual, pessoas casadas refluem de sua monogamia original e reacertam suas normas, incluindo o direito de cada um a outras relações simultâneas, mas na condição de serem secundárias e invisíveis.
Swing: quando, de forma consensual, pessoas casadas realizam trocas de parceiros em encontros/festas reservadas e estas restritas à órbita sexual e com formal exclusão de envolvimento afetivo.
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Poliamor: é a possibilidade de ter duas ou mais relações afetivo-sexuais, desde que contenham amor. A liberdade sexual normalmente não é prioritária, ou não faz parte do acordo. Inclui cláusulas de “polifidelidade”; permite a interferência direta dos parceiros na vida sexual-afetiva um do outro.
Relação livre: quando a pessoa mantém autonomia e plena liberdade pessoal, seja lá qual for a relação sexual/afetiva e em qualquer circunstância de estabilidade.
Fonte: Rede Relações Livres
Para saber mais
– A Cama na Varanda: Arejando Nossas Ideias a Respeito de Amor e Sexo, de Regina Navarro Lins. Editora Best Seller, 480 páginas (versão revista e ampliada), R$ 48.
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– O Livro do Amor: Da Pré-história à Renascença (Vol. 1), de Regina Navarro Lins. Editora Best Seller, 364 páginas, R$ 32.
– O Livro do Amor: Do Iluminismo à Atualidade (Vol. 2), de Regina Navarro Lins. Editora Best Seller, 364 páginas, R$ 32.
– É Possível Amar Duas Pessoas ao Mesmo Tempo?, de Noely Montes Moraes e outros autores. Editora Musa, 128 páginas, R$ 30.
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– Polyamory: The New Love Without Limits, de Deborah Anapol. Intinet Resource Center, 182 páginas.
– O Mito da Monogamia, de David Barash e Judith Eve Lipton. Editora Record, 322 páginas.
– O seriado Big Love, da HBO, mostra a história de uma família polígama: Hendrickson (Bill Paxton) vive com suas três mulheres.
– O documentário Poliamor (Brasil, 2010), do diretor José Agripino, conta a história de homens e mulheres que optaram em romper com o perfil burguês de relacionamento, caracterizado pela monogamia, e adotaram o poliamor.
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