Eles estão por trás de cada viagem de ônibus feita na cidade e atuam como motoristas ou cobradores. E há quem já tenha trabalhado nas duas funções. Nem sempre eles são notados na correria de quem entra e sai do transporte coletivo diariamente.
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Por isso, nesta terceira parte do projeto “Transporte Público Collab”, convidamos você a conhecer algumas das histórias destas pessoas que garantem que o serviço público funcione independentemente das dificuldades do cotidiano movimentado de todos nós.
Por Natiele Oliveira e Alice Kienen
Direção segura de quem venceu um câncer de mama
Quem encontra a motorista de ônibus Katia Regina dos Santos todos os dias com um sorriso no rosto nem imagina o que ela teve que enfrentar no último ano. Em 2020, Katia recebeu uma notícia difícil:
— Entrei num centro cirúrgico para retirar um nódulo que era benigno, que eu já tratava há dois anos. Naquele momento, os médicos descobriram um câncer de mama. Foi assustador, mas eu precisava ser forte por conta dos meus filhos. Ali começou a luta.
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O diagnóstico inesperado foi dado em maio. A partir daquele momento, Katia precisou ter coragem para enfrentar o novo cenário e tratar-se da doença. Olhando para trás, pensando em tudo que passou, Katia acredita que o diagnóstico do câncer veio para torná-la uma mulher ainda mais forte.

Hoje, aos 44 anos de idade, Katia consegue ver e valorizar mais facilmente as pequenas belezas da vida. Graças à descoberta da doença na fase inicial, após tomar os medicamentos receitados pelos médicos e fazer quimioterapia e radioterapia, ela conseguiu superar a doença e voltar ao trabalho.
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A motorista do transporte público de Blumenau lembra o quanto foi complicado lidar com todas as emoções que surgiram após o diagnóstico de câncer.
— Acredito que a parte mais difícil foi quando eu contei para os meus filhos. Eles são muito apegados a mim — recorda.
Katia sempre foi mãe “solo” de dois homens. Eles estão, atualmente, com 28 e 18 anos de idade, respectivamente.
— Eles ficaram desesperados, com medo de eu não conseguir passar por isso — explica.
Algumas vezes os filhos de Kátia choravam, preocupados com a mãe, e ela precisou ser forte para consolá-los.
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Sonho realizado
Há oito primaveras no transporte coletivo de Blumenau, Katia migrou da função de cobradora para a de motorista de ônibus há pouco mais de um ano. A mudança foi conquistada com muita força de vontade.
Antes de atuar no transporte público da cidade, Katia trabalhou como faxineira e atendente de posto de gasolina. Ela própria diz que sempre trabalhou no que era necessário para pagar as contas.
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A responsabilidade de dirigir um ônibus era um dos sonhos de Katia. O processo para virar motorista começa quando os interessados em assumir esta função e que já atuam no transporte público da cidade se inscrevem em uma lista.
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Depois deste primeiro passo, a concessionária faz uma pré-seleção dos candidatos que cumprem os critérios estabelecidos para a função. Em seguida, quem foi selecionado faz um curso profissionalizante.
Katia, depois de todas essas etapas, fez um teste prático e passou. Mas a mudança de função não foi imediata. Ela seguiu trabalhando como cobradora até surgir uma vaga de motorista. No caso dela, a mudança de cargo demorou três meses para ser feita.
Longa espera até voltar à rotina corrida
Katia voltou à rotina de trabalho como motorista de ônibus em Blumenau em agosto de 2021. Ela ficou afastada da função, para fazer o tratamento médico, durante 17 meses. Voltar ao trabalho, segundo ela, foi uma ótima experiência. Ela diz que estava ansiosa por esse momento.
Katia pedia aos médicos para voltar ao trabalho desde que recebeu o diagnóstico do câncer de mama.
— Essa volta foi essencial para a minha cabeça, saúde, para tudo. Não via a hora de voltar.
Como motorista, ela trabalha oito horas, seis dias por semana, e faz trajetos que contemplam os bairros Água Verde, Velha, com as linhas dos Caçadores e Jorge Lacerda, e Itoupava Norte, levando os passageiros das linhas Ponte Tamarindo e 25 de Julho.
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Enfrentando diferentes tipos de violência
A superação vivenciada por Katia não se resume apenas ao tratamento contra o câncer ou pela trajetória até conseguir uma colocação melhor na vida laboral. Diariamente, a exemplo de diversas outras mulheres que atuam em funções tradicionalmente ocupadas por homens, ela enfrenta o preconceito.
Conduzindo um veículo de grande porte pelas concorridas vias de Blumenau, Katia já sofreu diversos xingamentos — certa vez, chegou a ser chamada de “vaca” por um outro motorista no trânsito.
— Tento ignorar quando acontece esse tipo de coisa comigo. Sei que se eu retrucar, é pior. Então, tem vezes que até brinco mandando beijos e tal — comenta, sempre sorrindo.
Uma das pioneiras
Há 17 anos atuando no transporte coletivo de Blumenau, Marlene Satiro, 57 anos, foi a segunda mulher a atuar como cobradora de ônibus na cidade e uma das fundadoras do Sindetranscol. Apaixonada pela atividade, ela agarrou todas as oportunidades que encontrou pela frente na busca por melhorar as condições de trabalho dela e dos colegas.
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Antes de entrar no transporte coletivo de Blumenau, Marlene trabalhou no comércio:
— Confesso que detestava. Entrar como agente de bordo (cobradora) foi difícil por conta do machismo. Era como matar um leão por dia. Mas também me sentia realizada e orgulhosa pelas mulheres de Blumenau, uma cidade tão conservadora.
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Marlene comenta que a atenção exagerada ao fato de ela ser mulher a incomodava no início. Havia muita desconfiança, por parte dos usuários do transporte público e até de colegas, da capacidade que ela teria para desempenhar as tarefas da função.

Entre os desafios do dia a dia, ela teve que enfrentar episódios de assédio sexual e psicológico.
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— Acabei usando as ‘armas’ que dispunha para combater o julgamento. Por exemplo, quando trabalhava com um motorista novo, já deixava claro: ‘Eu vou te respeitar se você me respeitar. Você faz seu trabalho e eu faço o meu.
Com o tempo, a fama de durona de Marlene se espalhou e ela não precisou mais convencer os colegas. Além disso, receber elogios das usuárias do transporte coletivo a inspirava.
— Me sentia e me sinto muito à vontade, pois amo o que faço.
Na avaliação de Marlene, o espaço conquistado pelas mulheres no transporte coletivo de Blumenau abriu espaço para novas oportunidades. Especialmente após a representação sindical feita por ela a partir de 2006. Entre as conquistas desde então, está a possibilidade das mulheres também atuarem como motoristas dos ônibus.
Questionada se teria, ela própria, interesse em ser motorista, Marlene explica que nunca teve vontade de assumir esta função por perceber o estresse que os colegas passam. “Não foi falta de oportunidade, nem de incentivo. Nós, agentes de bordo, já sofremos junto, mas com menor intensidade”, acredita.
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Após ter atuado em quase todas as linhas de ônibus de Blumenau, Marlene trabalha atualmente na bilheteria do Terminal da Fonte. Entre o trabalho nesta função e a atividade sindical, ela usa o tempo livre para cuidar da irmã com a ajuda do filho, hoje com 31 anos.
Desafios da madrugada
A madrugada é a companheira diária de Paula Santos Fernandes, 54 anos, que atua como cobradora do transporte público de Blumenau há 12 anos. Aos sábados, o despertador dela toca às 2h. Nestes dias, Paula acorda um pouco mais cedo que o habitual para dar tempo de preparar o café para o trabalho.
No restante da semana, ela acorda às 4h, garantindo mais duas horinhas de sono. Enquanto a maior parte da cidade segue dormindo, Paula desperta para atuar nas primeiras linhas que operam no transporte urbano de Blumenau.
Interessada pela profissão de cobradora de ônibus, depois de atuar em outras empresas e em outras funções, Paula enviou currículo buscando uma vaga no transporte coletivo de Blumenau. Nos últimos 10 anos, ela pensou em mudar de função e tornar-se motorista de ônibus, mas acabou desistindo da ideia.
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— É bem cansativo, mas é gratificante. Não me vejo trabalhando em outro lugar. Eu gosto porque conheço muita gente, faço bastante amizade e conheço muitos lugares diferentes. Acredito que nós somos os trabalhadores que acordam mais cedo, pois somos nós que levamos as pessoas para o trabalho — lembra.

Como Paula entrou na carreira após outras mulheres terem conquistado os seus espaços, ela afirma que não sentiu tanto o peso do preconceito por atuar no setor do transporte público. Ela considera os colegas parte da família, especialmente pelo tempo que eles passam juntos diariamente.
Na trajetória até aqui, Paula foi vítima de criminosos em dois momentos. Durante um dia de expediente, ela foi vítima de furto no Terminal da Proeb. Um homem entrou no ônibus e levou o dinheiro que tinha sido coletado até aquele momento. Testemunhas tentaram impedir o criminoso de fugir, mas não conseguiram detê-lo a tempo.
O outro furto aconteceu enquanto Paula esperava o ônibus buscá-la para ir até o trabalho. Era por volta de 3h15min quando um carro parou perto dela e um homem levou a bolsa que ela usava e que tinha dentro carteira e celular. O aparelho era novo e Paula ainda estava pagando por ele, mas não conseguiu recuperá-lo.
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— Foi uma situação muito difícil. Não tinha ninguém na rua. Fiquei chorando no ponto de ônibus. Cheguei a correr atrás do assaltante, mas ele foi embora no carro. Depois disso, nunca mais fiquei no ponto sozinha.
Histórias que vêm do banco do ônibus
Rafael Mafra, de 32 anos, é um dos motoristas de ônibus de Blumenau que começou a trabalhar no transporte público ocupando outro banco: o do cobrador. Antigo promotor de vendas em supermercados e farmácias da região, há nove anos ele iniciou a carreira no transporte coletivo da cidade.
Quando atuava como cobrador, ele visava o cargo de motorista. Movido por este desejo, Rafael buscou a habilitação de categoria D.
— O começo foi bem interessante, pois eu vinha de uma área bem diferente. Então tudo era novidade.
Como motorista, Rafael começou na linha 510, que passa pela Rua Oscar Burger. Hoje, ele atua na mais movimentada de todas, a linha Troncal 10. Para Rafael, dirigir em Blumenau é uma aventura.
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— Não sabemos o que nos espera. Passamos por algumas (situações) quase todos os dias, evitando acidentes.

Quando ainda trabalhava como cobrador, Rosival Vieira da Silva, 42 anos, foi vítima de criminosos enquanto aguardava o ônibus para ir para o trabalho. Na ocasião, ele foi rendido por três homens encapuzados. Além do prejuízo causado pela situação, restou do episódio um trauma.
— Qualquer coisa hoje em dia me assusta. Até mesmo um latido ou o miado de um gato.
A exemplo de Rafael, Rosival foi atrás da habilitação de categoria D porque tinha vontade de mudar de função, saindo do banco de cobrador para ocupar a posição de quem conduz os veículos pela cidade. Rosival conta que fez parte, inclusive, de uma época na qual a concessionária do serviço público incentiva esse tipo de promoção.
Mas a trajetória dele foi longa até mudar de função. Ele começou como cobrador aos 15 anos de idade e atuou nesta função por 13 anos. Trabalhar no transporte público de Blumenau foi o primeiro e único emprego dele. Há 14 anos, Rosival mudou de função e atua como motorista de ônibus na cidade.
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A primeira mulher na boleia
Motorista de ônibus há 18 anos, Meri Teresinha Cardoso Mafra foi a primeira mulher a assumir o volante de um coletivo em Blumenau. Hoje com 54 anos, ela relembra uma trajetória em que foi desencorajada por muitos a seguir a carreira. Apesar dos votos contrários, ela diz que nunca pensou em desistir.
— No começo, foi bem difícil, pois muitos não aceitavam uma mulher nessa profissão. Tive que quebrar várias barreiras, mas ergui a cabeça e segui em frente. Falava para mim mesma: ‘se eles conseguem, eu também consigo’. Muitos me diziam que não aguentaria nem três dias”.

Para Meri, a maior parceria que ela tem durante a rotina de trabalho são os cobradores.
— Alguns passageiros são um amor. Outras pessoas são muito mal-educadas e não dão nem um simples bom dia. Mas sempre temos que entender o lado deles e ser gentil. Às vezes a pessoa precisa de atenção e isso eu sei fazer muito bem. Sou atenciosa com todos.
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Apesar do preconceito que enfrenta todos os dias e, também, por conta dele, Meri busca encorajar outras mulheres a trabalharem como motoristas. Na verdade, ela defende que a mulher possa seguir a carreira que ela desejar. Ela mesma já atuou em diversas frentes antes de se tornar pioneira entre as motoristas de ônibus da cidade. Antes, trabalhou como promotora, frentista, moto-taxista, costureira e com contabilidade.
Vencendo o machismo
Motorista há 13 anos da rota mais movimentada do transporte coletivo de Blumenau, a linha Troncal 10, Clarice Weege confirma que foi difícil começar na carreira por ser mulher. Hoje aos 43 anos de idade, ela recorda como foi assumir o espaço atrás do volante aos 30, quando ainda era comum sofrer com a resistência dos colegas.
— Nunca sofri nenhum assédio, mas sim preconceito por ser mulher. No início, foi um pouco difícil, porque sempre tem machismo. Acham que lugar de mulher é atrás do fogão.

Sendo mulher, Clarice vivenciou situações nas quais a empatia com outras mulheres se mostrou necessária e fundamental. Em um ônibus com a cobradora grávida, certa vez, ela precisou acudir a gestante que começou a sentir fortes dores durante uma viagem. O apoio de uma passageira também foi primordial naquela ocasião.
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— Tive que prestar socorro rapidamente. Parei em um ponto de ônibus e pedi para os passageiros descerem e pegarem o próximo (ônibus). Uma das passageiras se ofereceu para ir junto no hospital porque o ônibus não chegava na porta do pronto-socorro. Graças a Deus, deu tudo certo.
A parceria com os passageiros é um ponto importante nas memórias de Clarice. Não apenas em momentos bons, mas também nos difíceis. Ela recorda quando, em uma madrugada, foi escalada para dirigir pela linha Itapuí, que passa pela Rua Engenheiro Odebrecht, e precisou de auxílio para manobrar o veículo.
— Chovia muito, e a estrada de chão ficou muito lisa. O ônibus não subiu, e tive que pedir ajuda a um dos passageiros para ajudar a manobrar o ônibus até um local seguro para fazer a volta e seguir viagem.
— Minha rotina diária é bem apurada, mas sempre tiro um tempo para mim. Faço academia e gosto de jogar bola. Tenho dois filhos: a Ana Paula, de 26 anos, que já é casada, e o Lucas Eduardo, de 20, que é solteiro. Meu marido é superparceiro. Sempre me apoiou em tudo.
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O motorista que virou líder dos trabalhadores
Aos 52 anos de idade, Pradelino Moreira da Silva se orgulha da trajetória profissional que construiu até aqui. A principal fonte de satisfação para ele foram as melhorias trazidas para quem atua no transporte público da cidade.
Antes de ser dirigente sindical, Pradelino atuou como motorista do transporte público em Blumenau. No período entre 2017 e 2021, ele trocou a posição atrás do volante para representar a categoria.
São quase duas décadas de atuação no transporte público.
Natural de Videira, no Meio-Oeste catarinense, Pradelino mudou-se para Blumenau em 2002. Logo que chegou na cidade, ele começou a trabalhar como motorista na Rodovel, uma das empresas que faziam parte do Consórcio Siga, então responsável pelo transporte coletivo do município.
Antes de começar a trilhar as ruas de Blumenau atrás do volante de um ônibus, Pradelino era caminhoneiro. A experiência e a paixão por dirigir sempre foram pontos marcantes na vida dele.
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A mudança vivenciada em Blumenau é que, ao invés de transportar cargas, ele passou a levar pessoas:
— Nós transportamos as pessoas, a gente leva a riqueza da cidade, que é o povão.
Os desafios de quem dirige os ônibus da cidade
Para Pradelino, dirigir no trânsito de Blumenau é uma tarefa complicada. Ele afirma que “tira de letra” esse desafio por ter um comportamento sossegado e tranquilo. Mas, na visão do motorista que atualmente trabalha como sindicalista, é justamente esse trânsito complicado que provoca os atrasos nas viagens do transporte público.
Outra causa dos atrasos, segundo Pradelino, são as situações que envolvem as falhas mecânicas dos ônibus:
— Nunca queremos atrasar, mas às vezes acontece, e o cliente não entende.
O sindicalista, enquanto atuava como motorista, nunca teve problema com assaltos, mas teve que lidar com alguns usuários bêbados. Para enfrentar as situações delicadas, ele levou tudo “na brincadeira”.
— Relevei tudo que rolou comigo por que, afinal, quem nunca bebeu umas? — brinca.
No dia a dia da profissão, Pradelino sempre buscou, como os relatos acima revelam, ter um ótimo relacionamento com os passageiros do transporte público. E isso não muda quando ele fala sobre a relação com os colegas de trabalho.
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— Nós vivemos muito tempo juntos, né? Temos que nos dar bem. Por isso, eu sou bem amigo de todos — destaca o vice-presidente do Sindetranscol.
O que é o Collab:
O projeto ‘Transporte Coletivo Collab’ é uma série de reportagens produzida entre o Santa, o curso de Jornalismo da Universidade Regional de Blumenau (Furb) e outros veículos de comunicação da cidade.