Há quase um ano recebi um e-mail de um leitor que me deixou intrigada. Muito bem escrito por sinal, mas não era uma linguagem usual. Ele inseria termos que, mais de uma vez, tive que procurar o significado no dicionário. O primeiro e-mail respondi educadamente, mas com poucas palavras. Aí, veio o segundo e-mail, o terceiro, o quarto… Todos respondidos. Não passava um dia sequer sem pelo menos uma correspondência dele na caixa de entrada do meu correio eletrônico. Em todas, ele assinava: Seu leitor e amigo invisível. Virou uma brincadeira.
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Eu não tinha ideia de quem ele era. Aos poucos, fui recebendo informações: está na casa dos 80 anos (o que eu já imaginava, pelo teor das cartas), foi um profissional com uma bem-sucedida carreira (o que eu também já suspeitava), é de uma família tradicional, viúvo há muito tempo e praticamente não sai de casa. Passa o tempo lendo livros, vendo filmes e, principalmente, escutando músicas das décadas de 1950 e 1960, uma época da qual demonstra sentir muita saudade.
Tudo isso ele me conta nos e-mails, que muitas vezes se tornam desabafos. Encantada, leio e releio os elogios que ele faz à mulher da sua vida, com quem viveu um amor sem limites, da juventude à velhice, até a morte dela, após uma longa doença. A partir de então, achando que nada mais valia a pena, ele se fechou pro mundo. Ou melhor, fechou-se em seu próprio mundo.
No começo do ano passado, convencido por um dos netos, fez um cursinho básico de computação e aprendeu a mexer no notebook. “Só sei mandar e-mail”, ele diz. E foi assim, através do mundo virtual, que nos conhecemos. Nossa troca de correspondências e impressões sobre o mundo, tenho certeza, ajuda a aplacar um pouco a melancolia do meu amigo. Uma vez, ele escreveu:
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“Etta James, ontem falecida nos Estados Unidos, grande dama do soul, jazz e blues, tinha mais de 70 anos… Eu sou mais velho do que ela era, mas o meu caso é um caso perdido… Sem retorno! Não podes imaginar como é melancólica a sensação de quem quase está por completar cem anos de idade…”. (Ele está na casa dos 80, mas gosta de exagerar um pouco).
Outro dia, comentou: “Quando vou fazer exames no Laboratório Santa Luzia e ganho ticket para atendimento privilegiado e entro na fila da turma do reumatismo, olho para a assistência em volta e quase desabo de tristeza… A vida é de tão breve duração… Seria tão bom se as coisas boas passadas pudessem ser chamadas ao presente, como se fossem músicas colocadas nos CDs ou imagens repetidas em DVD…”.
Ele faz brincadeira com tudo, mas todas as suas frases têm muito de verdade. E me aconselha:
“Quem tem um futuro a cumprir, usufruindo das coisas boas e dos bons momentos, deve saudar o dia desde o aparecimento do crepúsculo, sabendo que logo chegará o sol. E quando começar a anoitecer, deve fixar os olhos e a mente naquele entardecer, que mostra, de forma inquestionável, que a vida é bela e merece ser bem vivida…”.
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Gosta de me mandar presentes, entre eles livros e CDs, novos e antigos. Coisas que ele aprecia e que quer me apresentar. Muitas biografias de gente famosa do Brasil e do mundo conheci assim, através dele. Numa bela tarde, há alguns meses, me chamaram na portaria do prédio. Surpresa! Ele estava lá, cheio de sorrisos e presentes, acompanhado de um dos netos. Outra vez, chegou a “comitiva da alegria”, como chama: ele, a fiel secretária e o motorista de táxi que sempre o atende, desde que decidiu não mais dirigir o próprio carro. A partir de então, meu amigo invisível se tornou um amigo de carne e osso.
No sábado passado, fui visitá-lo na UTI de um hospital, onde se recupera de uma grave infecção. E enquanto conversava e fazia um carinho na mão dele, fiquei pensando: como as pessoas entram na vida da gente assim, de repente, e se tornam importantes. Nunca imaginei ter amigos de mais de 80 anos. É enriquecedora esta experiência. Aprendo muito com eles, e me divirto também. Outro dia, tive o prazer de revisar um livro escrito por uma amiga escritora octogenária, uma doce pessoa. E mais outra que entrevistei dia desses, e mais outra que vou visitar em seu sítio…
Não sei como estará a saúde do meu amigo quando você estiver lendo este texto. Não sei nem mesmo se ele poderá ler esta pequena homenagem, pois não há como prever o futuro. Só me resta torcer e esperar. Mas fica aqui registrado todo o meu carinho e admiração, por ele e por toda esta turminha de cabelos brancos – incluindo aí meus pais – que dão mais sabor e significado à minha vida.
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