Quem viveu nos anos que antecederam o plano real, até 1994, quando os preços dos produtos nos supermercados mudavam diariamente, tem pavor da palavra inflação. Mas ela está de volta. No acumulado de 12 meses, o IPCA, principal índice de referência de preços ao consumidor, atingiu os dois dígitos, chegando a 10,25%. Os dados refletem o que os consumidores vivem no dia a dia.

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Aluguel, botijão de gás, energia elétrica, gasolina, carne, arroz, feijão, tudo aumentou e com uma velocidade assustadora. E os efeitos da tão temida inflação são sentidos ainda com mais intensidade justamente por aqueles que já vivem com pouco. 

A cesta básica de Florianópolis foi a segunda mais cara do país em agosto deste
ano. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), o custo chegou a R$ 659. A carne é o produto mais caro da lista, com aumento de 30,5% nos últimos 12 meses. 

Moradora do bairro José Mendes, na Capital, Alcenira Sauer, 38 anos, trabalha com divulgação e ganha cerca de R$ 1,3 mil por mês. Ela conta que o salário já não é suficiente para sustentar ela e a filha Luiza, de 10 anos.  

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— A pessoa que ganha um salário mínimo, pobre, não tem mais acesso à carne. Dois anos atrás eu ia para o mercado eu conseguia trazer carne moída e bife, mas hoje em dia não dá. A gente tá comendo frango, ovo ou salsicha. Minha filha pergunta às vezes “Ah mãe, porque tu não trouxe mais carnezinha de bife”, e explico que não temos condições de pagar — relata ela.

Hoje, quando Alcenira coloca os gastos mensais no papel, a conta não fecha: R$ 600 de aluguel, R$ 100 com a internet, R$ 120 de gás, cerca de R$ 500 para o mercado e mais R$ 150 na feira. O valor total ultrapassa o salário, e ela relata que precisa contar com a ajuda da família e de organizações sociais, como a Associação de Amigos da Casa da Criança e do Adolescente do Morro do Mocotó (Acam).

A entidade funciona no contraturno escolar. Por exemplo, as crianças que estudam à tarde, fazem as refeições da manhã na associação. Segundo Juliana Cardozo de Elesbão, que faz parte da Acam, durante a pandemia, mais pessoas precisaram de ajuda e a entidade procurou parcerias para fazer doação de cestas básicas. 

Em 2020, foi criada a Moeda Social. O programa fornece R$ 200 por mês para famílias da região, como a de Alcenira, que devem ser gastos em mercados dentro da comunidade. Atualmente, cerca de 100 famílias recebem o auxílio. 

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Muitos moradores de uma comunidade no bairro Velha Grande, em Blumenau, vivem uma realidade semelhante. Conforme a líder comunitária, Sirlei da Silva Gomes, a Dona Sila, 57 anos, a situação já era difícil antes. Com o desemprego causado pela pandemia, a vida de muitas famílias ficou ainda mais complicada.

— Quando teve o lockdown que parou tudo, as mães de família que chegavam para trabalhar eram mandadas embora, porque as pessoas que estavam empregando tiveram medo de pegar a Covid. As mães não podiam mais contar com aquele salário para comprar o básico. Arroz, feijão, bife… Bife é proibido falar. Hoje, se substitui por ovo, quando tem. Ver o filho pedindo leite e não ter leite pra botar na mamadeira — relata Dona Sila.

— Eu como líder de comunidade passei a ver coisas de perto que não sabia que aconteciam dentro da casa das pessoas. Tem situações muito tristes — completa Dona Sila.

Osso de boi vira alimento e polêmica 

A carne bovina saiu do cardápio de muitos catarinenses há algum tempo e o osso de boi passou a ser uma alternativa, seja para consumir os retalhos de carne, seja para dar gosto a um prato. Na última semana a placa de um estabelecimento de Florianópolis com a frase “Osso é vendido, não dado”, chamou a atenção para o assunto. 

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O dono do mercado e açougue, Ari dos Santos, diz que a procura pela carne bovina diminuiu 50% nos últimos meses, o que o motivou a buscar alternativas para aumentar a arrecadação e passou a comercializar o osso por R$ 4. Mesmo com o anúncio da venda, o comerciante diz que doa o produto quando uma pessoa pede doação. 

Com a repercussão da imagem da placa, o Procon-SC e a Associação Catarinense de Supermercados (Acats) emitiram uma nota orientando merca- dos e açougues a não venderem o produto, mas doarem. O diretor do órgão de defesa do consumidor, Tiago Silva, chamou a atitude de “desumana”. 

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A Associação dos Frigoríficos Independentes de Santa Catarina (Afisc), entretanto, destaca que a venda já era comum antes da crise, pois o osso é usado em pratos típicos.

— A venda de carne com osso, como um retalho, ou só o osso, sempre foi tradicional na venda de açougues. Existem pratos que precisam de ossos, existe um retalho de osso, principalmente de suíno, que é muito comercializado. O pessoal no inverno faz a “Quirera” e bota esses ossinhos. Isso vem sendo feito tradicionalmente há muitos anos — disse o presidente da Afisc, Miguel do Valle. 

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A comercialização está prevista e, consequentemente, autorizada na Resolução 1 do Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa) do Ministério da Agricultura. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), não há impedimento na legislação sanitária para venda de ossos bovinos em açougues. 

A polêmica sobre a venda de ossos de boi, mostra o lado desumano dos números. Alta do dólar, porcentagem recorde do aumento de preços e elevada taxa de desemprego expressam a realidade de muitas famílias que passaram a ter pavor da palavra inflação.

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Saúde em risco   

Em um momento em que é ne-essário ter ainda mais atenção à saúde, tirar as proteínas de ori- gem animal do cardápio sem fazer substituições adequadas é prejudicial ao corpo, como explica a nutricionista Gisele Brodwolf. Classificadas como proteínas de alto valor biológico, as carnes podem ser substituídas por alimen- tos de origem vegetal como as leguminosas (grão de bico, ervilha, feijão e lentilha). Mas são necessárias quantidades maiores para obter todos os nutrientes.  

— A exclusão de carnes e outros derivados dos animais também pode levar a deficiência da vitamina B12, que é essencial para a síntese de glóbulos vermelhos e formação e manutenção das células do sistema nervoso, diminuindo a imunidade. Sem acompanhamento de um profissional da saúde para a reposição poderá ocorrer diversos problemas — explica a especialista.

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Menos desperdício, mais doações 

Para ajudar a população que passa por dificuldades financeiras e ao mesmo tempo evitar o desperdício, o mercado Mirec, de Brusque, no Vale do Itajaí, começou a doar frutas e verduras que já não estão mais tão boas para vendas, mas continuam próprias para consumo. 

— Fazemos conforme as sobras da banca. São frutas e verduras que já não estão tão frescas como tem que ser para venda, mas que ainda conseguimos aproveitar para consumo. Tiramos essas unidades somente para a área de venda não ficar feia. Deixamos para venda as mais bonitas e frescas — explica a proprietária do mercado, Bruna Carla Eccher.

Os alimentos ficam em caixas sinalizadas e disponíveis para quem quiser pegar. Para a proprietária, não faz sentido desperdiçar frutas e verduras que estão boas para o consumo e podem enriquecer o prato de quem precisa.

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