Aline Almeida tinha um bom emprego em Porto Alegre, onde nasceu, mas era apaixonada por Nova York. Formada em Direito pela PUCRS, cedeu à sedução da Big Apple e foi tentar a vida por lá. Acabou fazendo carreira no turbulento mercado financeiro da cidade que nunca dorme e, quando o mundo caiu, no dia 15 de setembro de 2008, ela era um tijolinho de Wall Street. Cantora amadora – apresenta-se em clubes de Nova York -, estava assistindo a um musical na Broadway quando se soube que o governo dos Estados Unidos havia decidido o impensável: deixar quebrar o banco Lehman Brothers – que ela chama de A Lehman -, onde Aline atuava como paralegal – cargo inexistente no Brasil, espécie de auxiliar de advogado. Mesmo com um filho de 16 anos, Johann, fruto de uma gravidez adolescente que gerou um casamento prematuro, sempre confiou que o greencard obtido graças ao segundo casamento, com um americano – “por amor, não pelo greencard”, assegura -, garantiria seu futuro na cidade que escolheu para viver. Cinco anos depois, Aline é o retrato da trajetória da crise: perdeu o emprego, ficou algum tempo sem trabalho, mas conquistou cargos e salário melhores. A família segue em Porto Alegre, que ela visita ao menos uma vez ao ano, junto com Indaiatuba (SP), onde mora a irmã. Prestes a completar uma dúzia de anos em Nova York – quando comemorou 10, tatuou uma maçã no pulso – orgulha-se de outro feito: prepara-se para ver Johann se formar com double major – Economia e Política – na New York University (NYU), no próximo ano. Dos tempos tumultuados do final de 2008, sua maior lembrança ecoa referências que brasileiros colhem nos filmes: ao saber que o banco onde trabalhava havia quebrado, retirou na mesma noite uma caixa com objetos guardados no Lehman, por medo de não poder entrar no dia seguinte. Dos dias que se seguiram, o que mais lembra é de se reunir com colegas em bares para beber e compartilhar as incertezas da maior recessão desde a Grande Depressão dos anos 1930. Aline conversou com ZH sob uma condição: não publicar o nome de seu atual empregador, que tem regras estritas sobre exposição de funcionários.
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Zero Hora – Como foi o seu dia 15 de setembro?
Aline Almeida – Eu tinha ido com meu filho assistir a um musical na Broadway, era Spring Awakening. Havia rumores, mas até a noite nada estava confirmado. Eu recebi uma mensagem, pelo telefone, de um colega de São Paulo, dizendo algo como “agora foi”. Era por volta das 23h30min, larguei meu filho em um táxi (na época, Johann tinha a16 anos) e fui direto para o prédio principal. Não sei se era por causa do horário, mas não tinha ninguém lá. Entrei com meu crachá e fui recolher minhas coisas. Achei que no dia seguinte não iam deixar a gente entrar. A gente deixa no local de trabalho sapatos de salto, cremes, maquiagem. Saí com uma caixa na mão.
ZH – É a cena clássica dos filmes…
Aline – É, bem assim.
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Filmes que abordaram a crise de 2008
ZH – E no dia seguinte?
Aline – Ninguém me disse o que era para fazer. Na segunda, todos se reportaram ao emprego. No lobby, encontrei um colega de outro departamento, perguntei o que ele faria, ele respondeu que iria trabalhar normalmente. Quando cheguei no jurídico, as máquinas estavam espirrando termination notices (cancelando contratos). O chão estava forrado de papel de fax. Eram contratos bancários, o que a gente fazia.
ZH – Mas qual era o clima entre os colegas?
Aline – O choque foi muito grande. Até a última hora, a gente imaginava que se ia dar um jeito. A Lehman tinha um clima família, um clima de solidariedade, quase uma irmandade. Claro que havia a questão de ‘e agora, o que a gente vai fazer?’. Eu tinha greencard, sabia que ia conseguir sair dessa, mas pessoas que tinham visto de trabalho estavam mais preocupadas. Em 2008, ninguém pensava nas consequências de um banco desses pedir concordata. E aí a Lehman cai.
ZH – Mas as pessoas continuaram trabalhando por um tempo, não?
Aline – Ficamos até 16 de setembro, um mês. Era completamente surreal. Como eu me dava bem com o pessoal da mesa de operações, queria ficar no prédio principal para ver o que estava acontecendo. Muitos iam para o trabalho sem ter o que fazer. No jurídico, ainda havia trabalho, mas não sabia se ia ganhar salário. Na mesa de operações, não tinha nada para fazer. Todos ficavam conversando, esperando notícias.
ZH – E não discutiam como seria o futuro?
Aline – Nos primeiros dias, sim, mas depois de uma semana, esgotou tudo o que havia para dizer. Por volta das 14h, 15h, a gente saía para beber. Eu tinha um chefe marroquino, muito legal, que levava todos para beber. Os chefes tinham garrafas de vinho caríssimas que ganhavam de clientes. O meu chefe resolveu reunir todas as que tinha na sala de reuniões, nos chamou e disse: ‘vamos beber tudo’. Meu pai comentou, na época, ‘minha filha, cuidado para não virar alcoólatra’. Aqui, para tudo o que acontece, bebe-se. Desse mês, a memória mais viva que tenho é de sair para beber.
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ZH – As pessoas estavam abaladas?
Aline – Depende do que se considera abalada. No Brasil, é chorar e se deprimir, para os americanos é ir ao bar beber. Falava-se de como se havia chegado a esse ponto, que a economia dos EUA estava caindo também. Muitos comparavam a situação com a depressão de 1929. Como sou muito emotiva, sou agregadora, costumava dizer ‘vai ficar tudo bem, não vamos falar sobre isso’. Talvez por isso não tenha ouvido muito papo político. Uma semana depois do dia 15, o bar que costumávamos frequentar, chamado Tonic, fez uma festa só para o pessoal da Lehman, com bebida liberada por duas horas. O clima era ‘vai dar tudo certo, a gente está junto’.
ZH – Mas houve um período de desemprego?
Aline – Fui transferida para o Barclay’s, que comprou a operação das Américas. Em novembro, fui demitida e viajei para a Europa, com milhas. De janeiro a março de 2009, trabalhei como temporária na Alliance Bernstein (empresa de investimento). Mas depois eles cortaram pessoal e os temporários foram os primeiros a sair. Cheguei a ficar cinco meses sem nada. Em junho, veio a sondagem para o novo emprego. Como eu havia ajudado a abrir o escritório de São Paulo, tinha muitos contatos, conhecia gente em todas as partes do mundo. O convite foi para uma função de suporte, como secretária executiva, com a promessa de passar para o jurídico. Desta vez, demorou mais, porque o mercado estava ruim.
ZH – Então, cinco anos depois, a vida melhorou?
Aline – Agora, estou no jurídico há mais de um ano. Não sou mais uma assessora, sou uma negociadora. A vida melhorou, o salário aumentou significativamente. Não chega a ser o dobro, mas quase. Antes estava em um apartamento ruinzinho, agora estou em um melhor, perto de casa. O escritório se mudou para oito quadras da minha casa, vou trabalhar a pé. Se tem uma coisa de que nunca abri mão foi de morar em Manhattan. Em Porto Alegre, eu era assessora do desembargador no Tribunal de Justiça, tinha uma vida boa, um salário bom. Vim para cá porque amo muito Nova York, não tinha sentido vir para não morar em Manhattan. Estou numa fase mais tranquila, fui promovida. Há pouco, ajudei a negociar contratos de uma importante companhia aérea brasileira. Não era um contrato meu, mas me chamaram para ajudar um advogado mais sênior para dar conselhos sobre a legislação brasileira. Para mim, é legal quando consigo colocar o Brasil no meio do trabalho, mas nem sempre é possível.
ZH – E como está o interesse por negócios com o Brasil, segue em alta ou há alguma redução?
Aline – Eu percebo uma diminuição de interesse, não pelos emergentes, mas pelo Brasil. O Brasil estava bombando há alguns meses. Nesse momento, deu uma parada. O que eu faço é dar dinheiro para os brasileiros, do Brasil é que nos procuram. Os fundos e bancos do Brasil estão mais devagar. Mas veja, em Nova York, só se escuta música brasileira em elevadores, lojas de roupa, na balada tem “techno bossa”, todos falam em Copa e Olimpíada. É legal ser brasileiro nesse momento aqui. Mas a procura dos clientes do Brasil pelos bancos americanos está ficando mais devagar. Tem uma queda leve, não exacerbada. Se a gente fazia cem contratos com o Brasil, agora faz 80. Quando houve as manifestações no Brasil, a reação aqui foi como assim, o povo não está feliz?’ Vi alguns protestos no dia Sete de Setembro que não deram orgulho de ser brasileira.
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