A negativa para uma vaga de doutorado, pelo fato de ser mulher, foi um dos primeiros obstáculos que a pós-doutora em Saúde Alexandra Latini, 50 anos, encontrou ao longo da vida acadêmica. Coordenadora do Laboratório de Bioenergética e Estresse Oxidativo (Labox) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), através da ciência ela busca caminhos de uma colaboração internacional para tratar doenças autoimunes e também o câncer.
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Um estudo publicado ano passado na revista britânica Nature, periódico com 150 anos de história e um dos mais importantes do mundo científico, mostra como as células T podem ser manipuladas e contribuir para o tratamento da dor crônica, doenças autoimunes, e ainda do câncer. O foco dos pesquisadores foi na BH4 (tetraidrobiopterina), composto solúvel que todas as células produzem para assegurar a síntese de neurotransmissores. O grupo de pesquisa descobriu que a BH4 controla a proliferação das células T, que se torna essencial para abrir novas formas terapêuticas.
Ao serem ativadas, as células T podem proliferar e combater os "inimigos", infiltrando nos tecidos para defendê-los. É possível inibir o processo, para evitar uma inflamação prolongada, por exemplo, mas também tornar as células T agressivas para que ataquem tumores. Com essa modulação da BH4, seria possível tratar doenças alérgicas, inflamatórias, autoimunes, dor crônica e também o câncer.
A cada hipótese testada, um avanço para buscar a cura de doenças, sempre com a colaboração de universidades de outros países. Nesse estudo, a USA Harvard Medical School em Boston, e o Institute of Molecular Biology (IMBA), na Áustria, são os principais parceiros. Por aqui, no Labox da UFSC, uma equipe de 20 pessoas se debruça sobre o tema, com 17 mulheres reforçando a presença feminina na pesquisa.
Além do desafio de fazer ciência no Brasil, em relação a recursos disponíveis, a pesquisadora enfrenta barreiras culturais, como o fato de ser mulher e estrangeira. Alexandra é argentina, fez boa parte da carreira acadêmica em Córdoba, mas quando chegou por aqui, em 2001, decidiu abraçar a universalização do conhecimento como bandeira. Concluiu o pós-doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e em 2007, assumiu o Labox.
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A seguir a cientista fala sobre as dificuldades para fazer ciência no Brasil, machismo e a importância de estimular os alunos a gostarem de pesquisa.
DC: A publicação na Nature é uma prova de que a pesquisa de ponta é produzida a muitas mãos, e também em vários idiomas. O caminho é esse?
Alexandra Latini: Entendo que a universidade abre as portas do mundo. O conhecimento deixa de ter fronteiras, de ser na Argentina, no Brasil, e passa a ser um trabalho entre todos. Por isso, pesquisa e educação não podem ser consideradas como custos negativos para o governo ter que apoiar. Pelo contrário, devem ser considerados como um grande investimento para se ter um desenvolvimento sustentável, como qualquer país de primeiro mundo.
DC: Este ano foi de contingenciamento de bolsas e verbas para as universidades. Como foi viver nesse ambiente?
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Alexandra: As bolsas novas foram contingenciadas e bloqueadas. Todo mês vinha aquele comentário "serão cortadas tantas bolsas", no minuto final, chegava e dizia que ia conseguir pagar. Sabe o que isso parece? Uma opressão para se render. Que todo mês tem uma nova coisa que vai acontecer, um novo stress imprevisível, que não se sabe o que vem. Essa universidade esteve a ponto de fechar as portas em julho, setembro, e muitos terceirizados perderam contrato.
DC: Esse processo atingiu diretamente a equipe lidera por você?
Alexandra: Uma aluna que terminou o doutorado em abril recebeu bolsa e no momento que foram implementar foi bloqueada. O que aconteceu é que ela teve que se dividir, fez concurso como fisioterapeuta, então abandonou mais de 50% da pesquisa de ponta que estava fazendo para poder subsistir, e fora do horário de trabalho ela vai até o laboratório. Temos um novo artigo para submeter à Nature, e ela não vai ter como participar desse trabalho.
DC: Enquanto houver pesquisadores, a ciência continua. Como buscar novos interessados para a área?
Alexandra: O papel que os pesquisadores têm é tentar criar um pensamento crítico para o aluno durante a graduação. Sempre faço assim na minha aula, coloco o conteúdo que é essencial à minha disciplina, mas também problemas para estimular a pensar e propor soluções. Eventualmente, a partir dos alunos, tenho mudado determinadas atividades na minha pesquisa, conceitos que eles sozinhos têm organizado.
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DC: E nos pequenos, na educação básica?
Alexandra: No professor universitário, o principal papel é estimular o pensamento crítico. Agora, na educação básica, é essencial apresentar o assunto para que aquele mini indivíduo se torne interessado pela pesquisa no futuro. Vários estudos dizem que se uma criança não é estimulada com uma aula sobre biologia, por exemplo, na prática, ela nunca se tornará um pesquisador. O limite dessa pesquisa era sete anos, ou seja, se até essa idade ele nunca foi exposto a uma atividade de pesquisa, provavelmente nunca será um pesquisador.
DC: O que é produzido nas universidades muitas vezes não é compreendido pela população, e nos últimos tempos os professores também foram alvo de críticas…
Alexandra: Quando começaram os comentários sobre o professor universitário, obviamente todos ficamos ofendidos, porque estamos sempre trabalhando com o objetivo final, que é a sociedade. É um círculo: tem a pesquisa, o ensino, mas também a extensão para a comunidade. São três dimensões que se olhar mais de perto, não tem como separar. Nossos alunos disseram que tínhamos que nos mobilizar, colocar na praça, para a comunidade, e nossa família, o que é feito dentro da universidade. Temos uma grande deficiência, somos muito pesquisadores, mas não sabemos traduzir o que é feito na universidade para a população em geral.
DC: É importante criar esse caminho então, esse diálogo?
Alexandra: Sempre brinco que sou um mosquito, que nem faz barulho quando bate as asas para voar. A vida de pesquisador é dessa forma, fazer o trabalho em silêncio durante anos ou décadas e assim que surgir algum dado, talvez a mídia, ou pode ser um site de pesquisa, dar visibilidade e aí tudo muda. Porque parece que aí, nesse momento, é que você se torna interessante.
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DC: E dentro da ciência, como funciona o diálogo entre pesquisadores? O fato de ser mulher já determinou algo na carreira?
Alexandra: Me formei aos 20 anos em Farmácia. Em 1994, em Bioquímica. E apaixonada pela disciplina da Patologia, decidi que queria fazer o doutorado. Fui falar com um professor e ele me disse que não iria me aceitar porque mulher ficava grávida muito rápido. Ele me indicou outra professora, que me aceitou, e como sempre digo, tudo é um círculo. Quando vim morar no Brasil, senti que minha principal missão era a internacionalização. Quando tomei posse na UFSC, tinha um projeto de colaboração internacional com a Argentina. O coordenador do lado argentino era aquele professor que não me aceitou. E na reunião, ele contou a história aos colegas, dizendo que não tinha me aceitado e que hoje éramos colegas de colaboração internacional.
DC: Como você lidou com o caso, um não pelo fato de ser mulher? Teve outros episódios?
Alexandra: Devo ter ficado perturbada por uns 10 minutos, daí eu disse: "OK não tem problema, vou do outro lado, porque também não adianta insistir com alguém que não está disposto a escutar". Nem quis perder tempo. Fui buscar essa mulher que ele tinha me indicado e foi ela que marcou toda minha carreira, até hoje. Sempre que penso em como solucionar um problema, penso em como a doutora Raquel Dodelson de Kremer faria. Também na seleção para pós-doutorado em Cambridge, foram três pessoas pré-selecionadas pelo currículo. Quando apareci me perguntaram: "Mas você é mulher?". Eu disse: "Sim". E eles disseram que estavam procurando homens. Eu disse que não aceitava, pois quando eles viram meu currículo me pré-selecionaram, e que agora eles iam me escutar. Acabei ganhando a posição.
DC: Com a sua trajetória, qual é o peso de ter nascido na Argentina e hoje viver no Brasil?
Alexandra: A Argentina é um país muito conservador até hoje. Um amigo do Canadá me perguntou como eu me sentia aqui no Brasil, e eu disse que eventualmente fico triste por muita coisa que não concordo e que nunca vou concordar, principalmente relacionada com as minorias. Por outro lado, estou muito feliz por ter vindo e encontrado aqui uma nova casa, que me permitiu crescer em muita coisas, que eventualmente na Argentina ainda são tabu, uma sociedade muita conservadora, para colocar em palavras um pouco mais elegantes.
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DC: Não basta ser cientista, é preciso fazer mais e melhor quando se é mulher?
Alexandra: A mulher não tem uma posição de destaque na ciência, nem na maioria das áreas, e desde o momento em que me formei tive que estar sempre lutando contra isso. A questão da cor da pele é outra coisa que me incomoda muito no Brasil, e que de fato não tenho como contribuir e me sinto sem ferramentas. O que tento é lutar para que essa diferença seja cada vez menor, o gênero e a raça. Na ciência, mais da metade dos pesquisadores são mulheres, aqui e no mundo todo, mas à medida que você vai crescendo, o número de mulheres vai diminuindo e de homens aumentando. Isso é uma coisa que sei que sozinha aqui não tem como fazer, mudar, é uma coisa que realmente me dói aqui no coração. Essa questão de estar sempre lutando contra ser mulher, querer fazer ciência, ser estrangeira, e sempre considerada como estrangeira, são coisas difíceis de estar sempre lidando. Além do mais, por que mulher tem que ser perfeita, tem que produzir mais do que o homem, mais do que um grupo de homens, para poder ser considerada, isso me incomoda.
DC: O trabalho continua, e as parcerias também. Vocês têm colhido avanços no campo do Parkinson agora?
Alexandra: Em dezembro vamos submeter um novo artigo onde mostramos o papel da nossa molécula, BH4, contribuindo para a fisiopatologia da doença de Parkinson. O grupo do professor Roger Walz com a equipe dele, no Hospital Universitário, está nos ajudando na pesquisa translacional, ou seja, o que encontramos nos animais, pode ser corroborado na doença humana. Pacientes com Parkinson que eles tratam têm concordado em participar da pesquisa. Queremos encontrar biomarcadores precoces para a doença e também uma forma de tratar. Estamos coletando amostras biológicas, urina e sangue, para confirmar que o que encontramos no modelo animal do Parkinson na BH4 estão presentes nos pacientes. Isso seria nossa prova de conceito: ao se encontrar no humano, abre um campo para uma nova farmacologia que não se tenha até o momento.
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