Dramaturgia mínima, emoção máxima. São assim os filmes do cineasta cearense Karim Aïnouz, entre os quais está O Abismo Prateado. Exibido pela primeira vez há exatos dois anos, no Festival de Cannes de 2011, o longa só agora chega a Porto Alegre. Entra em cartaz nesta terça-feira, apenas na Sala Eduardo Hirtz da Cinemateca Paulo Amorim, em duas sessões diárias, às 14h30min e às 18h.

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A estreia discreta é inexplicável não apenas pela demora, mas por se tratar de um filme com apelo de público. O Abismo Prateado traz Alessandra Negrini em sua melhor performance no cinema – e isso que ela vem de uma sequência com o diretor Júlio Bressane (em Cleópatra e A Erva do Rato) – e é bem menos ousado formalmente do que Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo (2009), o longa anterior de Aïnouz (codirigido com Marcelo Gomes), que ficou quase cinco meses ininterruptos em cartaz em um shopping porto-alegrense.

O tema é o mesmo de Viajo… e também de O Céu de Suely (2005): o abandono. A trama de O Abismo… se passa em um dia, quando Violeta (papel de Alessandra), uma dentista de 40 anos da Zona Sul do Rio, casada e com um filho adolescente, recebe um recado na secretária eletrônica. É o marido (Otto Jr.), com quem ela vinha mantendo uma relação aparentemente estável, do ponto de vista sexual inclusive, dizendo que não a ama mais e que vai embora para Porto Alegre.

Aïnouz, então, passa a acompanhar o desespero da mulher, ora em busca dos rastros do homem, ora andando sem rumo pelas ruas do Rio ou batendo cabeça na pista de dança enquanto ouve – e se identifica com – Maniac, de Michael Sembello, um dos temas de Flashdance (“She?s a maniac, maniac on the floor/ And she?s dancing like she?s never danced before”, lembrou?).

Invariavelmente à mão e às vezes muito próxima do rosto da protagonista, a câmera capta com precisão o nervosismo e a intensidade da jornada de Violeta. Duas sequências impressionam: a que inicia na boate e termina na beira da praia, com belíssimas imagens das ondas do mar simbolizando a ideia de vislumbrar luz mesmo no abismo, e a do aeroporto, para onde ela vai de carona com um pai (Thiago Martins) e sua filha pequena (Gabi Pereira), um tantinho mais calma mas ainda pensando em pegar um avião rumo à capital gaúcha.

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O inferno de Violeta é o céu de Alessandra: diante de uma história pequena, com dramaturgia moldada a partir de um único conflito, a expressividade da atriz multiplica o potencial dramático de O Abismo Prateado. É um erro considerá-lo um filme menor – apesar da estratégia de lançamento. Sua alta voltagem emocional e sua elevada carga poética garantem, além de amplo alcance, a complexidade digna do grande cinema.

A inspiração

O Abismo Prateado é um daqueles filmes originados da letra de uma música, como Veludo Azul, de David Lynch (inspirada em Blue Velvet, do The Clovers), Uma Linda Mulher, de Garry Marshall (em Oh, Pretty Woman, de Roy Orbinson), e Faroeste Caboclo, que René Sampaio dirigiu a partir da canção homônima da Legião Urbana

(e que estreia no dia 30).

No caso de O Abismo Prateado, a trama sobre o pé na bunda sofrido por uma dentista pode lembrar as canções de dor-de-cotovelo de Lupicínio Rodrigues. Na verdade, no entanto, foi toda ela moldada a partir da canção Olhos nos Olhos, que Chico Buarque compôs e gravou pela primeira vez em 1976. Confira a íntegra da letra:

Quando você me deixou, meu bem

Me disse pra ser feliz e passar bem

Quis morrer de ciúme, quase enlouqueci

Mas depois, como era de costume, obedeci

Quando você me quiser rever

Já vai me encontrar refeita, pode crer

Olhos nos olhos, quero ver o que você faz

Ao sentir que sem você eu passo bem demais

E que venho até remoçando

Me pego cantando, sem mais, nem por quê

Tantas águas rolaram

Quantos homens me amaram

Bem mais e melhor que você

Quando talvez precisar de mim

Você sabe que a casa é sempre sua, venha, sim

Olhos nos olhos, quero ver o que você diz

Quero ver como suporta me ver tão feliz

O Abismo Prateado

De Karim Aïnouz. Com Alessandra Negrini, Otto Jr., Thiago Martins, Gabi Pereira e Carla Ribas.

Drama, Brasil, 2011. Duração: 83 minutos. Classificação: 14 anos.

Em cartaz em duas sessões diárias, a partir desta terça-feira, na Sala Eduardo Hirtz da Cinemateca Paulo Amorim, em Porto Alegre (veja os horários de exibição no roteiro de cinema).

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Coração: 4 de 5 estrelas.