Confidente de Nelson Mandela há mais de meio século, o advogado George Bizos, 85 anos, visitou o amigo na casa da família em Joanesburgo, em junho. Na despedida, os dois se abraçaram e Mandela o aconselhou:
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– George, não deixe a jaqueta para trás.
Foi a última vez que Bizos viu o homem do qual foi advogado de defesa por 27 anos. Dois dias depois, o ex-presidente foi internado, e o amigo, sabendo que não seria mais reconhecido, preferiu não vê-lo sofrendo.
Bizos compartilhou os principais momentos da vida do líder que será enterrado neste domingo em Qunu.
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Ele recebeu Zero Hora na manhã de sexta-feira no centro de Joanesburgo, em seu escritório de advocacia. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Zero Hora – Como vocês se conheceram e ficaram amigos?
George Bizos – Na Universidade de Witwatersrand, próximo a Joanesburgo, em 1948. Nelson Mandela estava lá há três anos. Ele era mais velho do que eu e nos tornamos amigos porque 1948 foi um ano com muito significado. Foi o ano em que o governo do apartheid se elegeu e ameaçou fechar universidades e escolas para negros. Nelson Mandela era o chefe da Liga Jovem do Congresso Nacional Africano (CNA), e protestos regulares ocorriam na universidade. Havia protestos contra o governo e sua política de ameaças contra universidades como Wits, que tinha um pequeno número de estudantes negros. Tornei-me seu advogado porque ele se formou antes de mim, em 1949, e começou a exercer a profissão em 1950. Comecei a exercer a advocacia em 1954. Costumávamos nos ver como colegas, nas ruas e nos corredores da corte, mas, de 1954 a 1962, quando ele foi para a clandestinidade, atuamos juntos em vários casos políticos e nos tornamos amigos muito próximos.
ZH – Como o regime do apartheid reagia ao fato de um advogado branco defender um prisioneiro negro? Continua depois da publicidade
Bizos – Havia pouquíssimos advogados negros. A maioria era defendida por brancos. Em relação a casos políticos, havia um grupo de advogados, entre os quais eu me encontrava, dedicado à defesa de pessoas durante a Campanha do Desafio, no início dos anos 1950, quando pessoas negras, brancas, de origem mista, homens e mulheres, desafiaram as leis do apartheid, que determinavam que negros deveriam entrar pela porta dos fundos e brancos pela da frente. Para pegar um trem, havia um portão para negros, outro para brancos. Na Campanha do Desafio, foi decidido que negros iriam pelos portões dos brancos e seriam presos. Se fossem brancos, iriam pelo portão dos negros e seriam presos. Nós os defenderíamos, sem negar que tivessem cometido um crime de acordo com a lei do apartheid, mas que consideravam a lei injusta e o fizeram por essa razão. Fizemos muitos casos. Além disso, mulheres, que antes de 1948 não precisavam portar passes, foram ameaçadas. Em 1950, todas passaram a precisar de passes, como os maridos. As mulheres resistiram e, em reuniões nos finais de semana, publicamente queimavam os passes. Foram acusadas, e nós as defendíamos.
ZH – O senhor se recorda de Mandela falando em deixar os métodos não violentos?
Bizos – Sim, isso ocorreu após o massacre de Sharpeville, em 1960, que matou 69 pessoas e deixou centenas de feridos. As pessoas foram mortas porque estavam protestando desarmadas contra as leis do apartheid. Foram baleadas a sangue-frio. A Campanha do Desafio, na realidade, tornou-se ainda mais forte por causa dessas mortes. O governo declarou estado de emergência e prendeu líderes de partidos de oposição. Foi quando o CNA e seus aliados decidiram que não seria mais positivo ter apenas protestos políticos pacíficos, que havia chegado o momento para a violência. Eu compartilhei um escritório ilegalmente com o primeiro advogado africano em Joanesburgo. Ele fazia parte da executiva do CNA. Foi preso saindo do nosso escritório de posse de um documento que tinha como título “Chegou a Hora de Juntar V com V”. Isso significava “Chegou a Hora de Responder à Violência com Violência”. Ele foi acusado, eu o defendi, mas ele fugiu porque seria colocado na cadeia por muitos anos. Nesse período, Mandela era o chefe do escritório regional do CNA. Foi quando ele teve de persuadir o chefe do partido, Albert Luthuli, que ganhou o Nobel da Paz, de que a política do CNA, de 1912 a 1961, não funcionava mais, e eles tiveram de apelar para a violência. Luthuli e outros militantes chegaram a um acordo pelo qual a violência era considerada contrária à política e deveria ser dirigida contra os símbolos do apartheid, com muito cuidado para que não houvesse feridos ou mortos. Isso começou a ser feito por uma organização chamada Umkhonto we Sizwe (Lança da Nação), chefiada por Mandela. Ele saiu do país ilegalmente para obter apoio de países africanos e também da França, da Grã-Bretanha, que ele visitou, e pedir vistos para pessoas que deixaram o país em 1960 porque estavam com medo de ser presas. Foi detido em 1962 por deixar o país ilegalmente e por organizar uma greve, e ficou cinco anos na prisão. Então, as autoridades encontraram muitos documentos escritos por Mandela e o seu diário, no qual ele registrou o que prometia, o que havia dito aos africanos e a alguns países europeus sobre a luta na África do Sul. Embora já estivesse na prisão, foi trazido de volta de Robben Island e se tornou o acusado número 1 por sabotagem, que tem pena equivalente a assassinato.
ZH – O senhor lhe deu algum conselho no famoso discurso durante o chamado julgamento de Rivonia, em 1963 e 1964? Continua depois da publicidade
Bizos – Sim, o discurso foi longo, 44 páginas, e abordava os sofrimentos dos negros no país em particular e os métodos ditatoriais do governo do apartheid contra a população como um todo, incluindo brancos, indianos, mestiços que fizeram proclamações comuns com o CNA. No último parágrafo, disse que estava preparado para morrer pelo que acreditava ser verdade, ou seja, que a África do Sul deveria ser um país democrático, onde não houvesse discriminação e sim liberdade de expressão e outros direitos humanos fundamentais. Sugeri a ele que suprimisse a frase de que estava preparado para morrer porque seria acusado pelo governo sob leis que eram favoráveis às políticas do apartheid. O juiz poderia considerar a declaração um desafio, e ele poderia ser sentenciado à morte. E, claro, os brancos, que estavam contra ele e sua organização, diriam: “Bem, ele pediu isso, ele recebeu”. Ele não concordou comigo. Disse que havia dito tantas vezes em plataformas públicas que estava preparado para morrer que, se não dissesse agora, “iriam dizer que eu era um boca grande enquanto estava livre, mas agora, diante da corte, acusado de sabotagem, não diz que está preparado para morrer”. Concordamos que ele iria dizer, mas que acrescentaria as palavras “se necessário for” antes de “estou preparado para morrer”. Ele concordou. Muitas pessoas acreditam que isso ajudou a evitar a pena de morte. Não acho que tenha tido um papel tão importante. O importante foi a intervenção dos governos dos Estados Unidos, da Grã-Bretanha e, possivelmente, da França, cuja população estava de braços levantados contra o apartheid, contra as prisões. Houve uma resolução quase unânime da ONU afirmando que os presos deveriam ser libertados. Apenas a África do Sul votou contra, e o representante do ditador António de Oliveira Salazar, de Portugal, se absteve. Os governos desses países estavam sob pressão de sua população, particularmente dos jovens nas universidades. Eles protestavam constantemente e diziam que deveriam ser libertadas as pessoas acusadas de sabotagem na África do Sul. Ocorreram ameaças de boicote à África do Sul. Estados Unidos e Grã-Bretanha disseram que estavam sob pressão. “Não piorem as coisas com uma condenação à morte”, disseram. O fato de o juiz não ser um enforcador também ajudou.
ZH – Que lembranças o senhor tem de suas visitas à prisão?
Bizos – Ia visitá-lo a cada três ou quatro meses, supostamente por razões familiares. Ele também queria saber o que estava acontecendo lá fora, e eu queria saber o que estava ocorrendo lá dentro com ele e com os presos para me comunicar secretamente com as pessoas no exílio, dizer o que cada um deveria fazer em cada circunstância.
ZH – Como ele se sentia, o que dizia?
Bizos – Prisioneiros estão mais preocupados com suas famílias, e presos políticos não perdem muito tempo reclamando de suas más condições. Mas os primeiros 10 anos foram muito duros. Tinham de usar calças curtas todo o ano, inclusive durante o frio do inverno no Oceano Atlântico. Ele era muito otimista, desde o começo. Na minha primeira visita, em 1964, ele foi trazido por oito sentinelas para a sala de consultas. Queria saber como a família estava, se o seu sucessor, Bram Fisher, estava ainda ativo, imaginava que talvez tivesse sido preso. Assim que terminamos as formalidades, ele disse: “George, você sabe, eu não estou aqui há muito tempo, mas este lugar me faz esquecer as boas maneiras. Eu ainda não te apresentei a minha guarda de honra”. Referia-se aos oito carcereiros. E prosseguiu em africâner. Me apresentou a cada um, e eu dei a mão a cada um deles. Não foi um cumprimento muito entusiasmado, mas estava claro que ele não iria se ajoelhar para as autoridades de seus captores. Continua depois da publicidade
ZH – Ele falava de como conseguiu conquistar a confiança de ambos os lados?
Bizos – Os grandes do regime não simpatizavam muito com ele. Mas ele conseguiu ganhar a confiança de muitos guardas com quem falava em africâner. Perguntava pelas famílias. Se tinham problemas, lhes oferecia conselhos legais. Ele se tornou, secretamente, bastante popular entre eles. Tanto que Nelson falou em africâner com um dos altos funcionários de Pretória que visitou a prisão, e esse funcionário disse-lhe que deveria falar inglês porque seu sotaque, de tão ruim, era um insulto à língua africâner. Ele tinha relatos de que Mandela estava ganhando simpatia do escalão mais baixo.
ZH – Por que ele evitou falar de política ao deixar a presidência da África do Sul?
Bizos – Depois de entregar a presidência, muitas pessoas, por causa de sua reputação, queriam saber o que o governo estava fazendo, qual era a política do governo. Ele dizia: “Vá e pergunte ao presidente, meu sucessor”. Ele não se aposentou da política, ele não queria guiar o presidente com suas declarações. Thabo Mbeki era o presidente, ele deveria decidir. Ele evitou fazer declarações públicas, com uma exceção. A política do presidente Mbeki em relação às pessoas que sofriam com aids era completamente inaceitável. Foi a público contra essa política. Seu filho morreu disso.
ZH – Como o senhor descreveria Mandela?
Bizos – Ele era altamente inteligente, com um alto grau de moralidade e dedicação ao país, um forte sentimento do que era certo ou errado no nível pessoal ou no nível público ou nacional. Ele nos mostrou que o exercício do poder tem de ser razoável e para o benefício das pessoas como um todo. Não em benefício de algum indivíduo ou partido político ou de qualquer um que esteja buscando favores ou cometendo atos de corrupção. Era uma torre de força que deveria ser seguida pela maioria das pessoas no país. Muitos dizem que estão seguindo seus passos, mas não penso que todos o tenham conhecido ou lido suas palavras ou que estejam suficientemente interessados em seguir seu exemplo em relação a como o país deveria ser governado. Continua depois da publicidade
ZH – Quais os seus melhores momentos juntos?
Bizos – Quando ele foi libertado, falou no mesmo estádio onde houve a recente cerimônia (o estádio de Soccer City). Eu estava entre os convidados VIPs, e ele não me viu antes de subir à tribuna. A chefe da cerimônia solicitou pelo microfone que eu fosse para o palco. Ele disse que foi o apoio da população que assegurou sua liberação da prisão.
ZH – Quando se viram pela última vez?
Bizos – Dois dias antes de ele ir para o hospital, eu o visitei em casa. Ele estava almoçando com Graça Machel, sua mulher, e nós falamos sobre assuntos familiares. Sua memória estava claramente falhando. Mas ele sabia o que tinha a ver com ele. Quando nos abraçamos e dissemos adeus, como eu estava de manga curta por ter esquecido meu casaco no carro, ele disse:
“George, assegure-se de que você não irá esquecer a sua jaqueta”. Foi a última vez que o vi. Houve comunicados emitidos pelo governo de que ele estava em estado crítico. A expressão que eles usaram foi que estava doente, mas estável. Eu tinha relatos de sua mulher de que ele realmente não reconhecia mais as pessoas, as condições eram muito difíceis, os médicos temiam infecções e era necessário usar uma máscara para vê-lo. Decidi que não havia sentido em ir vê-lo se ele não me reconheceria. Continua depois da publicidade
>> Assista a entrevista de George Bizos em vídeo: