O Chris não era nenhum santo – inclusive tinha uma adoração folclórica e engraçadíssima ao capeta, a ponto de colocar o nome de um dos seus gatos de dito-cujo; tatuar um pentagrama no cóccix; e pendurar um quadro bem feio na entrada da sala, que ele dizia ser o próprio retrato do diabo. Mas acho que o fato de não ser santo era uma das suas grandes qualidades, já que ele conduzia isso com uma profunda dignidade e honestidade com os outros e com ele próprio.
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O Chris podia ser destruidor em seus comentários, causador de grandes barracos nas festas, mas acho que ele fazia isso porque não existia outro jeito de suportar essa merda toda. No Chris, todos os defeitos estavam à mostra, pois assim a gente podia lidar com eles e, resolvido isso, desfrutar das suas qualidades, que eram muitas. O Chris tinha todas as qualidades que eu nunca tive, e também por isso sempre tive uma admiração especial por ele, com quem aprendi muito: sem o menor sentimento de culpa, com uma altivez impressionante, por mais que tivesse feito as piores merdas na noite anterior, ele era firme em suas convicções, além de possuir um talento genial pra contar histórias. O Chris era firme em suas convicções mesmo que a convicção fosse a mais imprudente possível: ele acreditava, por exemplo, que se alimentar não era uma coisa tão importante assim, e por isso só comia de vez em quando. Com o tempo, foi ficando magro e adoecia fácil. Nunca consegui convencê-lo do contrário, e era raro o dia em que ele descia comigo pra almoçar.
Convivi diariamente com o Chris durante quase dois anos, alugando um quarto em seu apartamento, na Trindade: o maior quarto da casa, já que ele não abria mão de seu quartinho de 10m². Sem dúvida, foi a pessoa mais louca que eu conheci em toda a minha vida, protagonista das situações mais absurdas, como no dia em que deu Rivotril ao próprio gato, para acalmá-lo, depois que o gato pulou do terceiro andar; ou então da vez que dormiu abraçado com uma cadeira debaixo da mesa da cozinha; etc. etc. Com o Chris aprendi também a ouvir Depeche Mode, a limpar banheiros e a gostar de gatos – uma vez deu ninhada no apartamento, e demorei meses pra convencê-lo a doar. Apesar do caos que era a sua vida, sempre foi uma bicha muito organizada.
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Além de viver coisas malucas, o Chris era o melhor narrador de suas histórias, e quem teve a chance de ouvir sobre o caso dele (mal-sucedido, claro) com o capoeirista hetero do Monte Cristo, sabe do que estou falando. O Chris foi a única pessoa que me fez rir sem parar durante uma hora inteira, e não só a mim, mas a uma plateia inteira que frequentava nosso apartamento. Ninguém tinha humor igual.
Uma vez escrevi sobre os poemas do Chris, e eu disse que eles eram uma mistura de encenação e intimidade, exibicionismo e segredo. Hoje fico pensando em todos esses segredos que ele não revelava a ninguém, ou talvez revelasse de um jeito meio torto, exigindo que a gente fizesse um grande malabarismo para entendê-los. A parte da encenação a gente conhecia, mas os segredos não, ou muito pouco, e talvez tenham sido eles que agora lhe tiraram a vida.
Porra, Chris! Que foda é falar de você no passado. Tenho certeza que muita gente morreu um pouco hoje. Você marcou época, querido.
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