Uma vez, Adão Iturrusgarai acordou de uma noite de sexo e não conseguia lembrar o nome da mina que estava ao seu lado. Teve a brilhante ideia de olhar no RG da bela adormecida – mas foi flagrado pela dita cuja mexendo na bolsa dela. Espirituoso, respondeu:
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– Não é nada disso que você está pensando! Só estou te roubando!
Noutra vez, ele foi ao programa de Jô Soares na companhia de Angeli, Laerte e Glauco, Los 3 Amigos. Lá pelas tantas, Angeli (justo o endeusado Angeli) resolveu sacanear o Quarto Amigo, como o cartunista de Cachoeira do Sul tinha sido apresentado: “O Adão gosta de mostrar a foto da mãe de maiô!”, falou.
– Adão – interpelou Jô – preciso te perguntar algo: você sente tesão pela sua mãe?
Ainda mais espirituoso, o cartunista gaúcho respondeu:
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– Pela minha mãe, não! Mas pela foto, sim!
São histórias como essas que aparecem, desenhadas com a falta de esmero característica de Adão, no livro Momentos Brilhantes da Minha Vida Ridícula (Zarabatana Books, 64 páginas, R$ 39). É uma coletânea das tiras e quadrinhos autobiográficos das séries Minha Vida Ridícula, Memórias Imbecis, Coisas que Eu Tenho, Private Eye e Roupa Suja – esta última, parceria com sua mulher, a advogada argentina Laura, mãe de seus filhos Olivia, quatro anos, e Camilo, três, com quem o gaúcho de 47 anos mora em Villa Carlos Paz, município da província de Córdoba, na Argentina. A obra também traz HQs produzidas por amigos de Iturrusgarai, como Laerte, Allan Sieber e Caco Galhardo, e um álbum de fotos. A sessão de autógrafos em Porto Alegre será às 19h de hoje, no Mezanino da Casa de Cultura Mario Quintana (Rua dos Andradas, 736), dentro da programação da FestiPOA Literária Revisitada e Sampleada.
No prefácio, Adão garante que todas as histórias são reais e que nada foi “turbinado”. Mas convém não confundir criador e criaturas: se o sexo é o motor das aventuras dos caubóis gays Rocky & Hudson e de Aline e seus Dois Namorados, em Momentos Brilhantes de Minha Vida Ridícula torna-se apenas um entre outros temas. Adão relembra sua primeira experiência com drogas pesadas (folhas cruas de mostarda) e a primeira vez em que bebeu absinto (“Depois de três cálices, virei um pastel”); seus primórdios no universo dos quadrinhos (como a polêmica revista Dundum, de 1991, que lhe rendeu processos na mesma medida que defensores, como Luis Fernando Verissimo) e a convivência com ídolos e amigos (Paulo Leminski, Gilbert Shelton, Angeli, Laerte, Glauco, Otto Guerra); suas aspirações de quando criança e suas pirações da vida adulta.
Nem tudo tem graça, ou pelo menos nem tudo que tem graça provoca gargalhadas como a Antrologia de Aline lançada em 2011. Entre os pontos baixos, estão as Memórias Imbecis e, com raras exceções, as HQs dos chapas do quadrinista. Parece que, em nome da veracidade, Adão abriu mão do atrevimento. Ainda bem que, de repente, em um jantar com amigos, uma alcaparra vai parar no cofrinho de Adão! A saudade do trinômio sexo-sexo-sexo pode ser matada em uma visita com Otto Guerra a um peep show bagaceiro de Copacabana. O lado “pai de família” diverte pacas – o terror dos bares, quem diria, virou um terror dos lares. E a crise dos 40 anos gerou uma das melhores piadas, que dispensa o desenho:
“Aos 15 anos, eu queria mudar o mundo.
Aos 25, queria mudar minha cidade.
Aos 35, queria mudar o bairro.
Hoje, mal consigo mudar minhas meias.”
“Economizei em psicanálise”
O lançamento em Porto Alegre de Momentos Brilhantes da Minha Vida Ridícula não se resume a uma sessão de autógrafos. No próprio Mezanino da Casa de Cultura Mario Quintana (Rua dos Andradas, 736), está em cartaz a exposição O Mundo Maravilhoso de Adão Iturrusgarai. E a função de hoje, às 19h, será complementada pelo talk show Iturrusgarai Is Fucking Back. A entrada é franca.
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Na entrevista a seguir (concedida por e-mail), o cartunista gaúcho, que há 19 anos mora longe do Estado – já passou por São Paulo, Paris e Patagônia e agora está numa cidadezinha de Córdoba, província argentina -, adianta atrações desse talk show, comenta alguns dos momentos retratados na antologia, projeta como será quando seus filhos pequenos lerem as sacanagens que o pai produz, e revela suas madeleines porto-alegrenses.
Zero Hora – Momentos Brilhantes da Minha Vida Ridícula surfa em uma tendência dos quadrinhos contemporâneos, a das obras autobiográficas, como É Tudo Mais ou Menos Verdade, de Allan Sieber, Memória de Elefante, de Caeto, e Retalhos, de Craig Thompson (além de remeter a Robert Crumb). Algum motivo em especial para que quadrinistas resolvam se expor assim, virar personagens?
Adão Iturrusgarai – O Crumb fazia isso de maneira genial. O Angeli também, com a série Angeli em Crise. Acho que minha vida sempre foi muito intensa, por isso a quantidade de histórias trágicas e engraçadas. O melhor é capitalizar esses eventos, rir disso tudo, do que chorar. Assim economizo em psicanálise. Um volume 2 não está descartado.
ZH – No prefácio, tu dizes que todas as situações aconteceram de verdade. Todas mesmo? De qual tens mais vergonha? E de qual tens mais orgulho?
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Adão – Quase todas as histórias aconteceram. Poucas coisas foram modificadas. Não me envergonho de nada que foi publicado. Não digo que seja orgulho, mas a mais engraçada foi quando fiz xixi no meu próprio rosto, em uma viagem pela Patagônia. Desci do carro e ventava muito. O xixi voltou. Foi uma espécie de “auto golden shower”.
ZH – Que tipo de coisas do teu passado ou do teu presente tu preferes deixar de fora dos quadrinhos?
Adão – Eu coloco até meus familiares em situações limítrofes ao constrangimento. Mas não chego a ofendê-los. Algumas coisas deixei de fora em respeito a essas pessoas. Mas não poupo meu avô nem minha mãe. Tem até uma foto dela jovem de biquíni. Ao contrário, ela acha isso divertido. Inclusive topou ser uma das entrevistadas do meu talk show.
ZH – Tua mulher, a Laura, entrou na história por vontade própria ou por convite teu? Como surgiu a ideia do Roupa Suja?
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Adão – Foram as duas coisas. Me inspirei na série que faz o casal Crumb. Vi que os desenhos da Laura eram bons, e fizemos algumas tiras. O negócio foi crescendo, as pessoas gostando, e rendeu uma série. Mas agora ela cansou de desenhar. A gente brigava nos deadlines: ela gostava do resultado, mas odiava o compromisso de entregar a tira.
ZH – Já pensaste em como vai ser quando teus filhos lerem tuas histórias sobre sexo, bebida, drogas?
Adão – Tenho alguns anos para pensar nisso… Mas, falando sério, não é algo que me preocupa. Esse é o meu trabalho, não posso esconder deles meu ganha-pão. Prefiro explicar as coisas para eles, aos poucos, os cuidados que se tem que ter na vida, os perigos, as armadilhas. Não é evitando esses assuntos que você os afasta dos filhos. No fim das contas, eles vão ver um monte de sujeira na internet e na rua… É preciso que sejam fortalecidos, preparados, dentro de casa. Minha mulher está totalmente de acordo. Minha biblioteca sempre estará aberta para meus filhos, e os “assuntos tabus” serão poucos.
ZH – Tua vida é um gibi aberto. Mas e a dos teus amigos? Alguém se incomodou ao se ver retratado?
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Adão – Pelo contrário. Adoraram. Da próxima vez, vou cobrar por isso.
ZH – E tu, te incomodaste com alguma HQ dos amigos? A do Benett, que cita uma frase do Maxx: ” Com o Adão só tem dois assuntos: cu e pó”.
Adão – Sim, a do Benett é a única que chegou no limite. Cheguei a pensar em conversar com ele, mas depois desisti. É que as histórias dos meus amigos retratam nossas épocas mais “punks”, quando convivíamos, de bares e noitadas fortes. Depois casei, tive filhos, vim morar na Argentina e me afastei um pouco da vida deles. Minha vida mudou muito.
ZH – Tu foste adotado por Los 3 Amigos (Angeli, Laerte e o saudoso Glauco, assassinado em 2010). Qual foi teu maior aprendizado com eles?
Adão – Aprendi muito. Angeli, Laerte e Glauco são os grandes do quadrinho de humor brasileiro. Mas o mais precioso de nosso encontro foi a amizade que mantemos até hoje. Mesmo morando longe, somos muito amigos. Sempre que vou a São Paulo, nos encontramos. Não são nada blasé, são superbagaceiros.
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ZH – Olhando para trás (no bom sentido), como tu vês a evolução do teu desenho (se é que evoluiu – desculpe a piada!)?
Adão – Meu desenho evoluiu pra trás. Há uns sete anos, resolvi deixar de tentar fazer um desenho bem feitinho para voltar às minhas origens, um desenho mais solto, bastante inspirado em um dos meus mestres, o francês Georges Wolinski. Isso me libertou muito e fez o meu humor ficar mais despreocupado.
ZH – Tu sempre foste irreverente, audacioso – criaste, em pleno Rio Grande do Sul, os caubóis gays Rocky e Hudson. Em um momento de patrulha do humor pelo politicamente correto, tu te sentes cerceado, limitado?
Adão – Não me sinto incomodado com o politicamente correto. Pouca gente me ataca. Ninguém ameaçou de me processar recentemente. A única coisa curiosa é que meu nome foi vetado pelo Núcleo de Cultura de Cachoeira do Sul, minha cidade natal, para ser patrono da feira do livro de lá. Viajei esses tempos com o escritor António Skármeta (autor de O Carteiro e o Poeta), contei a história para ele, e ele me disse: “O filho pródigo rejeitado pela mãe! Não se preocupe, Adão, um dia vai ter uma rua com seu nome em Cachoeira!”. Fico imaginando uma Rua Iturrusgarai. Pobres moradores, nunca vão conseguir pronunciar.
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ZH – A propósito de Rio Grande do Sul: diferentemente do Allan Sieber, nesse teu olhar para o passado tu não pegas pesado com a herança gaúcha.
Adão – Não tenho problema com o Rio Grande do Sul. Porto Alegre é uma cidade encantadora. Se voltasse pro Brasil, seria uma das cidades que gostaria de morar. Só acho que o gaúcho, o do CTG, o da música tradicionalista, deveria ter mais gingado. São muito durões na música. Falta um pouco de Mick Jagger aí.
ZH – Nesse teu retorno a Porto Alegre, o que tu pretendes fazer? Tem algum lugar em especial do qual sentes saudade?
Adão – Ouvir um pouco de gauche, jogar conversa fora com amigos, comprar mariola no supermercado e comer um filé na Lancheria do Parque, o melhor do mundo (espero que com esta declaração eles me deem de presente o prato). O Atelier de Massas também está no meu alvo.
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ZH – Tu já moraste em uma pá de lugares. Onde tua vida foi mais maluca: em Cachoeira do Sul, em Porto Alegre, em São Paulo, em Paris ou na Patagônia?
Adão – Na Patagônia. Fui a um lugar cheio de lobos, focas, elefantes e leões marinhos e vi se aproximarem quatro orcas. Gigantescas. Quase vi aquele ataque, único no mundo, onde as orcas encalham para abocanhar as foquinhas. Tentei empurrá-las para facilitar o banquete, mas não deu certo. Não fui tão mau assim. Dizem que Jacques Cousteau fez o mesmo para filmar a caçada.
ZH – Fala um pouco mais sobre como vai ser o talk show.
Adão – Vou entrevistar o Fabio Zimbres, o Otto Guerra, o Santiago e minha mãe. À minha mãe, perguntarei algumas barbaridades. O Jimi Joe dará uma canja. Me disseram que terá uma dançarina de dança do ventre. Se tivesse um talk show no hospício, seria mais ou menos assim.