Raros são os personagens, protagonistas ou coadjuvantes, isentos de superstição. Em Mundiais, o recurso adicional às vezes assume importância capital – dos mais simplórios aos mais sofisticados artistas da bola, são muitos os devotos do acaso.
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Crendices são uma parte inalienável do futebol, fruto da relação com o universo de aparências, de fatos, de desejos, de possibilidades, de acontecimentos futuros e assim por diante, na tentativa de harmonizar todos esses elementos. É a herança do ancestral que todos nós carregamos de algum modo. É a antiguidade que persiste nas pessoas. Você pode perceber isso quando homens notáveis vão fazer uma palestra e ainda se persignam, ou esboçam um gesto especial, ou juntam coisas de um modo peculiar. Tudo isso remete claramente a pequenos movimentos que já foram feitos antes e que deram resultados bons, por isso são repetidos.
No futebol, só há uma maneira de se fazer isso, que com certeza não é através de um recurso comum, corriqueiro, diário. Não há de ser com um chute, com um drible, com a bola ou o gol. Não: o Sobrenatural de Almeida, nas palavras de Nelson Rodrigues, tem de intervir. Todos os jogadores, craques ou não, ou sabem, ou percebem, ou valorizam e levam em conta tal fato. Mesmo as pessoas dotadas, mesmo aquelas que saberiam compreender o que está acontecendo hesitam em deixar de fora o que não estão entendendo agora e que pode intervir na realidade. Johan Cruyff, até ele, que de todos os pontos de vista se apresenta a nós como um intelectual, alguém de alta formação, de grande pensamento, um sujeito superior, era supersticioso.
A superstição se faz pela repetição, e a repetição é um modo de reafirmação. Se você pode repetir uma coisa que já fez e que faz bem, isso visivelmente se constitui em ganho e avanço quando for enfrentar um novo desafio. O treinador não está alheio a este universo de crendices. Pelo contrário: tem de acreditar nisso também. O técnico que visivelmente não compartilha das crendices ou das convicções de seus jogadores está perdendo o comando de seu grupo. Porque eles certamente vão cobrar isso dele. Exigir uma resposta cabal, definitiva e, mais, solidária. Em futebol é preciso ter convicções, e elas devem ser expressas com clareza. Felipão, por exemplo, leva consigo uma imagem de Nossa Senhora de Caravaggio – estava ela na conquista do Penta. Scolari é um homem religioso, e na forma obstinada das pessoas que têm crença. Não é simplesmente um sujeito que crê. Ele é isso. Reafirma continuamente sua fé e exige este comportamento. Não que ele seja moralista no sentido de não fizer exatamente como ele diz significa estar fora da lei ou da moral do jogo. Não. Mas fica claro que, de algum modo, para que você consiga a coesão, a adesão das partes e a vitalidade de todos, o mesmo tipo de resposta e a mesma continuada intenção de ganhar, todos hão de compartilhar a fé.
No mundo da crendice, do lado de fora do mundo objetivo, resgatamos uma força extra, um reforço individual e psicológico importante. Eu sou capaz. Por quê? Porque abri a porta da mesma maneira que sempre abri, porque vesti a camiseta de costume, porque calcei a mesma chuteira, porque a caneleira não mudou, porque meu colega que joga na esquerda segue por lá. Há jogadores que têm por hábito urinar antes do jogo. É uma questão fisiológica? Não, não é. É uma necessidade orgânica que se desenvolveu psicologicamente. É uma superstição. É um rito. É um episódio.
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Mas faz parte do jogo.