Quando Beatriz Souza conquistou a primeira medalha de ouro do Brasil nos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, havia um torcedor a quase 10 mil quilômetros de distância prestando a atenção em cada movimento da atleta. Mesmo longe do tatame, João Vitor Ferreira conseguiu sentir, novamente, a emoção que apenas um campeão mundial é capaz de entender. Afinal, ainda que estivesse em Timbó, fora dos holofotes da mídia, o judoca de 27 anos também carrega no peito a famosa peça de metal que representa “o melhor do mundo” — por mais que poucos saibam da conquista histórica do catarinense.
Continua depois da publicidade
Clique aqui para receber as notícias do NSC Total pelo Canal do WhatsApp
Diagnosticado com autismo nível 2 e Síndrome do X frágil, João foi o primeiro e único brasileiro a trazer para casa o ouro depois de participar do Campeonato Mundial de Judô para pessoas com deficiência intelectual. A disputa ocorreu na Alemanha, em 2017, e foi chancelada pela Federação Internacional de Judô (FIJ) — entidade que regulamenta o esporte no mundo.
À época, para subir no lugar mais alto do pódio, João enfrentou seis adversários, vencendo cada combate pela pontuação máxima do judô, o ippon. Na final, ele derrotou o belga Kristof Meeus. O campeonato reuniu, ao todo, 110 judocas de 13 países diferentes, mas foi a bandeira do Brasil que virou a protagonista do evento ao ser enrolada no corpo do jovem catarinense enquanto todos permaneciam em silêncio para ouvir o hino nacional.

A lembrança é ainda mais especial para João por ter a presença de uma das pessoas que mais o incentivou no esporte: Giovani Ferreira, pai e técnico do judoca. Ele morreu quatro anos depois da conquista do filho, vítima de Covid-19. A perda abalou a família e fez com que o jovem catarinense até abrisse mão do judô por um tempo, devido a questões de saúde.
Continua depois da publicidade
Atualmente, mesmo afastado das competições, João Vitor ainda segue com o sonho de chegar mais longe no esporte. Uma das esperanças dele é participar, algum dia, das Paralimpíadas, que começam na próxima quarta-feira (28).
O impasse é que o autismo, por si só, não é considerado uma classe elegível na disputa, já que podem participar apenas atletas com deficiências física, visual ou intelectual. No judô, especificamente, são convocadas apenas pessoas com deficiência visual.
Veja algumas das medalhas expostas no quarto do João
Mesmo assim, a mãe de João, Adriana Silva Ferreira, acredita que as regras sejam alteradas em um futuro próximo e o filho consiga se tornar um atleta paralímpico algum dia. Para ela, o garoto teria grandes chances de ser classificado durante o período de seleção.
Continua depois da publicidade
— A gente sabe que não é um processo simples. Mas uma hora vai. E tomara que o João tenha essa oportunidade. Sempre falamos que, mesmo que não participe, pelo menos ele abriu caminhos — diz Adri.
Afinal, se tem um sentimento que essa família conhece bem é a vontade de lutar por direitos iguais e justiça, sempre que for necessário.

Da descoberta do autismo até a conclusão de uma faculdade
Foram 12 anos até João entender melhor sobre si mesmo e se aprofundar ainda mais em um processo de autoconhecimento, com a ajuda dos pais. Nessa idade ele recebeu o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista e descobriu a síndrome do X frágil, que se manifesta quando há uma mutação genética no cromossomo X.
Entre os sintomas da doença está o atraso no desenvolvimento da fala, o que explica o fato de João só ter começado a pronunciar as primeiras palavras aos oito anos. Antes dessa conclusão, no entanto, o garoto teve as amígdalas retiradas por um médico que acreditava que eram elas as responsáveis por impedir que o menino falasse. Mas ele continuou sem dizer nada.
Continua depois da publicidade
— Como eu tenho dois filhos mais velhos, eu fazia essa comparação do desenvolvimento. Aquele já sentava e engatinhava, mas o João não. Só que ninguém falava em autismo na época. E o autista era aquela pessoa que só ficava em movimento de pêndulo, era essa a visão que se tinha — explica a mãe.

Na escola, quando ainda era apenas uma criança, João foi reprovado três vezes na primeira série do ensino fundamental porque, segundo os professores, não estava preparado para ir à próxima fase.
Aos nove anos, antes de saber do autismo e da anomalia genética, o garoto também passou por um teste de QI, onde constataram que João era uma pessoa com deficiência intelectual (DI). A notícia, na época, pegou os pais do garoto de surpresa, mas também os motivou a dar todo o apoio que o filho precisasse — como já era desde o início.
— E eu lembro que foi um baque. No dia cheguei a perguntar para a neuropsicóloga se o João sairia desse casulo que ele vive em algum momento, virar uma borboleta. Ela disse que não tinha como responder isso. Mas ele se tornou uma borboleta e, hoje, voa sozinho — relembra Adriana.
Continua depois da publicidade

Isso não significa, porém, que foi um processo fácil. Ainda hoje, depois de mais de 15 anos, João lembra do dia em que uma professora o humilhou em sala de aula. A profissional disse ao menino que “ele não seria nada na vida, além de um deficiente”. Só que mesmo sendo apenas uma criança com o coração partido, João conseguiu agir com maturidade porque sabia, já naquela época, o quanto era amado.
— Escutar isso dela foi um baque. Mais tarde contei para o pai e para a mãe o que tinha acontecido. E isso me fez querer fazer o contrário. Vou mostrar para ela que eu posso. Me deu um combustível a mais, para o lado bom. E junto com tudo isso veio o esporte. Fiz faculdade. E hoje eu perdoo ela. Não guardo mágoa, nem rancor. Só queria dizer para ela um “obrigado” — conta João.
Hoje, o jovem é formado em Fisioterapia, tem o próprio consultório e trabalha com uma equipe de judô de Santo Amaro da Imperatriz, acompanhando os atletas nas competições. Para atingir esse patamar, no entanto, João teve de enfrentar alguns “nãos”.

Ele concluiu a faculdade em agosto de 2023, mas levou cerca de sete meses para conseguir um lugar no mercado. Nas primeiras entrevistas de emprego, lembra de ouvir que não seria contratado por ser uma pessoa com autismo ou, então, por “gaguejar” — condição também provocada pela síndrome do X frágil.
Continua depois da publicidade
Só que nada disso o desanimou. João sabia que era um profissional capacitado para exercer a função, afinal, tinha estudado para isso. Na faculdade, conseguiu convencer um dos professores a adaptar os métodos das provas porque tinha dificuldade em acompanhar o ritmo das aulas.
O pedido foi acatado e João aproveitou ao máximo os aprendizados em sala de aula — assim como era de direito dele.
— Ele [o professor] passou a fazer a prova acessível, não mais fácil. Continuava com as mesmas perguntas e dizia que eu ia sair da faculdade sabendo fisioterapia — relembra.
Agora, João está finalizando uma pós-graduação em fisioterapia geriátrica e, ao olhar para trás, se sente vitorioso por conseguir seguir adiante mesmo em meio ao sofrimento causado pela morte do pai.
Continua depois da publicidade
Um legado de amor que vai além do esporte
As várias medalhas espalhadas pelo quarto lembram a trajetória que construiu no esporte ao lado de Giovani. Apesar de ter aprendido tanto com o pai no esporte — que ainda era o técnico do atleta —, João sabe que também deixou lições para a família de judocas.
Isso porque o amor pelo esporte vem sendo passado de geração para geração. O avô de João chegou a ser enterrado com o próprio kimono em forma de homenagem. Só que quando o judô foi ao encontro do pequeno João, quando ele ainda era só uma criança, o tradicional espírito de competitividade reverenciado pela família até então foi substituído por uma sensibilidade e empatia antes desconhecidas.
Apesar das medalhas que conquistou desde a infância, João nunca se importou em ganhar ou perder. Em uma disputa na natação, ele lembra de ter vencido outro garoto que costumava ficar em primeiro lugar. Ao perceber que o menino estava triste, João tomou uma decisão inesperada.
— Eu fui dar um abraço nele. Depois meu pai perguntou por que eu fui fazer isso. Mas é que eu pensei o seguinte: se eu ganhar a primeira e ele a segunda, ninguém vai ficar triste — conta.
Continua depois da publicidade

João e Adriana relembram, aos risos, que Giovani ficou indignado com a atitude do filho, na época. Esse não era um comportamento comum na família que fazia de tudo para alcançar o pódio durante uma competição. Só que João mostrou que era possível, também, aproveitar esses momentos para espalhar amor e gentileza.
Até hoje, o jovem já participou de diferentes disputas em Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Paraná. No exterior, ele já foi para competições na Itália e Alemanha, onde se tornou campeão mundial na Alemanha.
Na Holanda também competiu ao menos três vezes. Uma das últimas medalhas que conquistou no país europeu, antes de se afastar do judô, João dedicou ao pai. Já se foram um, dois…mais de mil dias sem o parceiro do tatame e da vida, conforme o atleta vem registrando em um caderno desde que Giovani se foi.

Diante da perda que ainda é tão recente, João não sabe quando irá voltar para o esporte que lhe concedeu o título de melhor do mundo. Enquanto isso, ele segue firme na profissão de fisioterapeuta que escolheu para ajudar outras pessoas a se sentirem melhor.
Continua depois da publicidade
O sonho das Paralimpíadas também permanece ali, guardado a sete chaves. Talvez um dia o timboense seja revelado — pela segunda vez — ao Brasil e ao resto do mundo caso atinja a meta almejada por qualquer atleta. De qualquer forma, ele sabe que já é um vencedor — no esporte e na vida.

*Sob supervisão de Augusto Ittner
Leia também
Jovem tem formatura emocionante em SC após descoberta de doença rara na adolescência
Apoio do público para menino autista completar corrida em Blumenau reflete poder do esporte