O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma na quarta-feira (7) o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 1017365, com repercussão geral, que discute se a data da promulgação da Constituição Federal (5/10/1988) deve ser adotada como marco temporal para definição da ocupação tradicional da terra por indígenas. O Estado de Santa Catarina é o autor da ação que se iniciou em 2009, no governo de Leonel Pavan, quando a então Fundação do Meio Ambiente (Fatma) – o atual Instituto do Meio Ambiente (IMA) –, ajuizou uma ação de reintegração de posse de área considerada invadidas por indígenas do povo Xokleng, na Reserva do Sassafrás, em municípios do Vale do Itajaí. O julgamento está suspenso por pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes.

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Até o momento, foram proferidos dois votos: o do relator, ministro Edson Fachin, que se manifestou contra o marco temporal, e o do ministro Nunes Marques, a favor. O advogado Márcio Vicari, procurador-geral do Estado, declarou em audiência pública na Assembleia Legislativa de Santa Catarina (Alesc), em 6 de abril, que “o governo estadual está dedicado a defender os agricultores catarinenses”.

Para o advogado Rafael Modesto dos Santos, que trabalha na defesa do povo Xokleng, a tese do marco temporal é inconstitucional e o Estado incorre num erro em defender apenas um lado nessa história. O procurador-geral refuta o argumento de parcialidade:

— O Estado que hoje represento está defendendo os interesses próprios, assim como do Instituto do Meio Ambiente (IMA), que é uma autarquia estadual, e que com essa posição desde o começo do processo. Não se trata de uma posição a favor de A ou B, mas de defender uma área de proteção ambiental, a Reserva do Sassafrás – diz Vicari.

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O que é o marco temporal indígena

Para se chegar na Terra Indígena Laklãnõ-Ibirama, que tem limites com os municípios de José Boiteux, Doutor Pedrinho, Vitor Meireles e Itaiópolis, é preciso viajar por estradas de chão. O traçado confunde: ora se está em terra indígena, ora em terras dos não-indígenas com plantações de milho, de fumo, de árvores frutíferas. Estima-se que em torno de 486 famílias de agricultores estejam na área em conflito, a maioria comprada legalmente do Estado com escrituras. Do total, em torno de 150 não teriam como provar por terem agido de má-fé e sem direito à indenização, aponta um documento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

A área em questão é sobreposta à reserva e já identificada como parte da Terra Indígena Ibirama Laklãnõ. A linha de demarcação do território começou a ser feita, mas o Estado entrou com o pedido de reintegração. Desde 2013 o traçado encontra-se paralisado. Em 2019, as coisas pareciam caminhar para um entendimento a partir de uma audiência pública de conciliação, no STF, mediada pelo ministro Edson Fachin, mas não houve acordo.

– O Estado não está desrespeitando os indígenas, a menos que se entenda como respeito fazer tudo o que eles querem. Entendemos, ainda, que não esteja ocorrendo um conflito entre indígenas e agricultores. Mas reconhecemos que a decisão do STF pode causar um caos social – diz Vicari.

Marco temporal indígena é aprovado na Câmara

“Pedimos presença da polícia federal”, explica cacique-presidente

Os Xokleng são cerca de 2,3 mil morando em nove aldeias, todas com autonomia política e um cacique-presidente que dá unidade à comunidade. De cordo com Ticum Grakam, cacique-presidente, a incerteza do que irá acontecer do dia 7 de junho foi considerada:

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– Não se pode deixar a comunidade desguarnecida e isso pode acontecer caso a votação se prolongue por alguns dias. Nós encaminhamos ofício ao Ministério Público Federal e ao Ministério dos Povos Indígenas pedindo o envio de policiais federais para estarem aqui fazendo proteção – explica Ticum.

A pressão da comunidade sobre as lideranças é grande. A tensão cresceu depois que circulou um vídeo protagonizado por políticas e agricultores da região falando em “banho de sangue” e “guerra civil”. Para não espalhar mais o pânico, os caciques pediram para que não houvesse compartilhamento do conteúdo. Mesmo assim, muitos tiveram acesso.

A mobilização dos indígenas de SC contra o marco temporal, que será analisado no STF

– Nós estamos confiantes que a Corte Suprema mantenha o que está previsto na Constituição Federal, pois nada aqui está escrito sobre marco temporal – diz Ticum, que em uma das idas ao STF ganhou um exemplar autografado pelo ministro Dias Toffoli.

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“Crianças são mais vulneráveis nos conflitos”, teme vice-cacica

Temendo represália, os professores chegaram a cogitar a antecipação das férias marcadas para o período de 15 de julho. Preocupa especialmente a situação dos alunos da educação infantil, os quais precisam sair dos limites da reserva indígena. Todos os dias, a partir das 6h, o ônibus com os alunos percorre a estrada que passa por área de agricultores de terras em conflito.

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Com a invasão e assassinatos de quatro crianças numa creche em Blumenau, em 5 de abril, a segurança foi reforçada nas escolas da rede pública estadual. Esse é o caso da Escola Indígena de Educação Básica Laklãnõ, aldeia Pliplatõl, aonde vigias se revezam e cones foram colocados no acesso principal. Ninguém entra sem ser identificado. Mas a preocupação continua.

– A nossa briga não é com os agricultores, que também são vítimas do Estado que vendeu terras que não eram dele. Mas a gente sabe quem em situações de conflito as crianças ficam sempre mais vulneráveis – diz a vice-cacica, Jussara Reis dos Santos.

Bazílio Priprá, 65 anos, mora na parte alta da aldeia Palmeira. Sem nunca ter sido eleito cacique, o ex-funcionário da antiga Funai é um dos maiores conhecedores da realidade Xokleng. Há pelos menos 36 anos ele acompanha o vaivém do seu povo em busca do reconhecimento definitivo do território.

Na casa cercada por árvores frutíferas e pés de araucárias, espécie típica de regiões frias e que dá a semente do pinhão, ele guarda um documento que considera sagrado: um decreto do então governador do Estado de Santa Catarina, Bulcão Vianna (em exercício), com a data de três de abril de 1926, incluindo a área atualmente em questão dentro do território Xokleng:

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– Os agricultores que compraram a terra sabem, as madeireiras sabem e o Estado sabe: essas terras são dos Xokleng. O Estado, que vendeu a área para as empresas colonizadoras e essas para os agricultores, deve indenizar as famílias – diz Priprá.

O que acontece após a aprovação do marco temporal indígena pela Câmara

Expulsão dos territórios e uma nova Lei Áurea

Para o advogado Rafael Modesto dos Santos, a postura do Estado precisa ser questionada. O defensor dos Xokleng lembra que essa não é uma responsabilidade do atual governo, já que outros governos passaram desde o ingresso da ação.

– O Estado defende o direito dos ruralistas, quando na verdade não deveria defender direito de ninguém. Escolhe um lado, assim como no século contratava os bugreiros para caçar, para afugentar e matar os indígenas. Nesse contexto de expulsão violenta marcado por caçadas humanas, é feita a titulação dessas terras indígenas em favor de terceiros, em prejuízo ao patrimônio público da União – pontua advogado.

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Para Santos, a ação dos bugreiros é uma mancha na história brasileira e que o Estado teria que reconhecer. Tanto o estado brasileiro como um todo como o estado federado de Santa Catarina, o responsável pelo pagamento aos Santos diz não acreditar que o STF venha a aceitar a tese do marco temporal. Se isso acontecer, diz, muitas comunidades indígenas que reivindicam por demarcação de seus territórios não terão um espaço territorial para manutenção, expansão dos sistemas culturais com os usos e costumes, e isso implicaria num prejuízo cultural muito grande. Além de que esses grupos que estão morando na beira das estradas, margens de rodovias, acampamentos improvisados ou fundos de fazendas seriam expulsos e naturalmente forçados a ocupar espaços na periferia das cidades.

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Questionado se entende que isso poderia resultar num movimento parecido quando da assinatura da Lei Áurea (13 de maio de 1888), o advogado responde:

– Assim como o “fim da escravidão” empurrou as populações pobres e sem condições de subsistência para as periferias das cidades, uma votação favorável ao marco temporal condenará os indígenas a uma situação bem parecida e isso não apenas em Santa Catarina, mas em todo o país – conclui Santos.

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