Por Bárbara Cabral da Conceição*

Comecei a estudar tecnologia em meados dos anos 2000, quando os cursos de informática básica eram os mais procurados e eu nem sabia o que era programação. Quase 20 anos depois eu olho para trás e vejo as grandes mudanças que ocorreram na minha vida principalmente em minha forma de pensar e perceber o mundo.

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Vinda de uma família de classe média baixa, estudante de ensino público, eu vivia no interior até que meu pai foi transferido para Florianópolis, onde encontrei a possibilidade de estudar e fazer uma universidade. Mesmo com muita dificuldade financeira, estudando quase 16 horas por dia e nos fins de semana, eu passei no vestibular de 2001.

Ter uma graduação, primeiramente, era o sonho que meu avô, Ivo Artur Palma, para os filhos. Mas naquela época o acesso às universidades exigia investimento do próprio bolso, ou enviar os filhos à Capital estudar, o que era inviável para a família na época. Meu avô era de família de imigrantes italianos que vieram ao Brasil fugindo da crise na Europa e, ao menos quando o conheci, ele sempre foi um exemplo para mim de integridade e amor, junto à minha avó, Hedviges Pereira Palma.

Ele plantou isso no meu coração: eu cresci com o sonho dele, que se tornou o meu sonho. Fui a primeira da família a ir para universidade, depois disso vários primas e primas fizeram o mesmo. Minha mãe inclusive, terminou o ensino médio quando eu estava fazendo a faculdade. Eu me lembro que quando escolhi o curso, Sistemas de Informação, nem tinha ideia do que era e onde esta escolha iria me levar. Lembro-me que eu queria ser arquiteta, mas depois de ter feito um exame vocacional, mudei de opinião.

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No exame era pedido que você se enxergasse como seria estar lá na universidade e como seria o seu dia a dia, que me revelou que seria muito mais difícil do que eu imaginava. Teria que ir para a faculdade durante o dia inteiro e, para isso, teria que ter o dinheiro do ônibus, do almoço, de materiais para aulas, dos livros, fora roupas, calçado, etc. Eu concluí que não poderia arcar com tudo isso se não trabalhasse. Então decidi ser prática e ver o que eu poderia fazer, de forma bem realista, dentre os cursos noturnos da UFSC.

Os únicos que eu me atraíram foram Administração e Sistemas de Informação. Este último tinha um texto que apenas dizia que o curso era uma mescla do curso de Administração com disciplinas relacionadas à Informática, o que parecia aos meus olhos bem promissor.

Quando entrei no curso, a primeira dificuldade foi não saber ao menos o que era realizar um “download”. Por incrível que pareça eu estava bem atrás de grande parte dos alunos que ao menos tinha um computador em casa. Ralei e fiz minha primeira prova de programação. Para minha surpresa, tirei uma nota maior que muitos colegas que já tinham conhecimento prévio. A primeira forma de preconceito que me deparei foi quando, ao mostrar minha nota para outras colegas mulheres, uma delas perguntou: “Onde você conseguiu a prova?”. Essa frase impactou a minha vida e fez me sentir ainda mais deslocada naquele ambiente.

Acabei me isolando por uma série de motivos, mas o maior deles foi me sentir menos capaz do que os outros alunos no curso. Mesmo assim eu prossegui, consegui um estágio na Prefeitura de Florianópolis, em um projeto para crianças e adolescentes carentes chamado “Casa da Liberdade”. Antes disso, eu trabalhava numa empresa de gás industrial, chegava na faculdade de uniforme da empresa, via alguns olhares de pessoas que tinham vergonha de chegar perto de mim. Eu me sentia inadequada, eu não tinha a linguagem dos demais, eu mal sabia conversar sobre assuntos técnicos.

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Eu vivia cansada, dormia dentro dos ônibus, dormia nas aulas mesmo lutando contra o cansaço. Ônibus lotado. Meu marido sabia quem eu era antes mesmo de me conhecer porque pessoas do bairro disseram a ele que me viam saindo muito cedo e chegando muito tarde todos os dias. Às vezes eu tentava usar os computadores do laboratórios que na época eram muito ruins, perdi vários disquetes tentando salvar os trabalhos. Virei noite fazendo projetos e os finais de semana geralmente eu estava estudando.

Por fim, não conseguia me conectar às minhas colegas, elas tinham uma vida muito diferente da minha… Chegavam de banho tomado e bem arrumadas. Tinham disposição, alegria e energia para conversar e interagir. Eu só queria que terminasse logo a aula pra eu ir pra casa comer e dormir. Isso criou uma barreira com as outras mulheres e me fez me isolar por muitos anos, mesmo já trabalhando na área de Tecnologia.

Mesmo com muito esforço, reprovei em algumas disciplinas, tive bursite no pé. Já andei a faculdade inteira em greve tentando encontrar um servidor público que recebesse meu atestado e gerar um documento que eu precisava apresentar ao professor.

Depois tudo, me formei, com muito orgulho, no final de 2007 em Sistemas de Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina. Sinto-me muito orgulhosa dessa conquista.

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Meu avô, minha inspiração, e minha família, todos presentes na minha formatura. Meu avô tinha recém perdido a minha avó em um acidente de carro, ele estava com câncer, e mesmo assim decidiu realizar o último sonho da vida dele: participar da colação de grau da sua neta formada na faculdade. Naquele dia tudo fez sentido, e todo esforço valeu a pena!

Depois do distanciamento que vivi de outras mulheres, foi somente em 2015, com a ajuda de algumas amigas de trabalho, eu percebi que eu precisava me abrir e ajudar outras pessoas que se identificam como mulheres que, como eu, tiveram dificuldades de interagir e expor suas idéias sem medo e sem julgamento. Eu precisava deixar todo o passado para trás e mostrar a elas que não precisavam passar o que quer que fosse sozinhas, que podiam confiar em outras pessoas e obter apoio e colaboração no seu desenvolvimento profissional.

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Bárbara em sua formatura (Foto: Arquivo Pessoal)

Isto mudou meus horizontes e me fez querer trabalhar muito próxima às comunidades. Tentando incentivar, encorajar e motivar principalmente outras pessoas na área de TI. Por isso, hoje, eu sou community leader de algumas comunidades na região da grande Florianópolis e, sempre que posso, convido mulheres e meninas para entrarem para a área de Tecnologia.

Apoio projetos sociais, como o AJ&A (Associação Judô & Artes), ajudo com mentoria, dou conselhos, compartilho materiais e cursos na área. Sou facilitadora da Cultura DevOps dentro das empresas e nos eventos, levando cultura de colaboração e automação para onde quer que eu vá. Promovendo a comunicação não-violenta, diversidade, respeito às diferenças e, principalmente, troca de experiências e conhecimento. Hoje eu sinto que tenho um propósito de levar um ambiente onde a segurança psicológica é o principal valor para atrair, reter e desenvolver pessoas que se identificam com o gênero feminino dentro da àrea a ponto de reduzir o índice de evasão das mulheres e criar um ambiente mais diverso e seguro.

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* Bárbara Cabral da Conceição é Women Techmakers Ambassador de Florianópolis. Ela foi convidada pela Tech Power para escrever sobre sua experiência como desenvolvedora. A Tech Power é uma iniciativa que busca ampliar a participação e liderança feminina no setor tecnológico da Grande Florianópolis por meio da comunicação. O projeto foi criado por mulheres que trabalham na Dialetto, empresa de assessoria de imprensa e marketing digital especializada em tecnologia. Saiba mais.